Pesquisa intervencionista

 Precisamos de pesquisa intervencionista?

 Por Marco Antonio Pereira Querol

O que é pesquisa intervencionista? Precisamos dela? Se sim, por quê? O que isso significa para minha pesquisa? Infelizmente, os desafios que enfrentamos hoje em dia não nos dão tempo para esperar. Devemos acelerar o processo de mudança de paradigma na atual geração de pesquisadores e rapidamente. Mas como? Primeiro, colocando a discussão na mesa. Tomar consciência do problema é o primeiro passo para resolvê-lo.

O objetivo desta postagem é iniciar uma discussão sobre se, e porque a pesquisa intervencionista (PI) é necessária. Começo argumentando que a PI é particularmente relevante devido às limitações dos laboratórios e da pesquisa de campo em tempos de rápida transformação em que os objetos são instáveis e incontroláveis. Continuamos apresentando os três modelos de produção de conhecimento: laboratórios, pesquisa de campo e intervencionista sugeridos por (Hatchuel, 2000). Concordamos com Hatchuel (2000) que as PI não substituirão esses outros modelos de produção de conhecimento, mas provavelmente serão integradas e/ou complementarão entre si.

Quais são os modelos atuais de produção de conhecimento?

Hatchuel (2000) faz uma diferenciação entre métodos de produção de conhecimento (por exemplo, método experimental) e disciplinas (por exemplo, biologia, matemática, medicina, administração, etc.). A disciplina refere-se ao objeto de investigação que estamos tomando para análise, enquanto os métodos de produção de conhecimento referem-se às condições de representação tanto do mundo quanto de nós. A produção de conhecimento é transdisciplinar. Esses métodos são modelos universais de ação, mediados por suposições.

O método experimental, por exemplo, que é hoje um modo predominante de produção de conhecimento em Proteção de Plantas é baseado na estratificação, reputabilidade, controle de variáveis e condições, o que permitiria análise estatística e cálculo de probabilidade.

Conforme observado por Hatchuel, existem três modelos de produção de conhecimento: pesquisa de laboratório, pesquisa de campo e pesquisa intervencionista (Hatchuel, 2000).

O modelo de laboratório surgiu durante os séculos 17 e 18. Nesse modelo, o pesquisador – considerado um mestre – manipula entidades sob condições controladas. O pesquisador define as perguntas, classifica os objetos em grupos, conduz testes e assim por diante. Nesse contexto, a intervenção externa é proibida, uma vez que o método requer independência e controle estrito.

O modelo de pesquisa de campo consiste em estudar objetos que não podem ser manipulados naturalizando-os para observá-los e analisá-los. Pode ser aplicado a fenômenos naturais e sociais. Nesse caso, o pesquisador separa a si mesmo e suas ações do sistema em estudo, posicionando-se como um observador neutro. Naturalizar significa estabilizar um objeto de estudo e isolá-lo da influência de fatores externos. Em algumas ciências, como a administração, esse processo é particularmente difícil porque indicadores, abordagens, ferramentas e atores estão em constante mudança. Os objetos de gerenciamento não são fixos, mas se transformam continuamente. Para compreender tais fenômenos dinâmicos e evolutivos, torna-se necessária a pesquisa intervencionista, pois permite ao pesquisador se envolver e influenciar o sistema para revelar.

O que é Pesquisa Intervencionista?

A definição de intervenção do dicionário de Cambridge é ação intencional para mudar uma situação, com o objetivo de melhorá-la ou impedir que piore. No campo da teoria de sistemas, intervenção é definida como ação propositada de um agente humano, com o objetivo de gerar mudança (Midgley, 2000). Virkkunen e Newnham (2013) redefinem essa como o falarmos sobre “ação propositada, da parte de um agente humano, a fim de auxiliar o redirecionamento da mudança em curso” (Virkkunen & Newnham, 2013).

No que tange a atividade de pesquisa, uma pesquisa intervencionista se diferencia pela característica de que o pesquisador está diretamente envolvido interferindo e produzindo mudanças no sistema sob estudo, em vez de apenas observar de forma “neutra”.

Como apontado por Hatchuel (2000) uma das suposições fundamentais da pesquisa intervencionista é que conhecimento e ação não são duas coisas separadas, mas parte de uma das mesmas coisas.  O conhecimento é parte constitutiva da ação. O objeto das PI é a ação coletiva. O conhecimento é um meio de transformar o mundo. A ação coletiva no mundo real muitas vezes requer conhecimento que ainda existe, nem resposta pronta, nem estrutura pronta e rede de atores. Eles devem ser construídos. Esses tipos de problemas são de natureza contraditória, o que significa que não existe uma solução única, mas várias concorrentes e opostas. Requer o que é chamado de cognição epistêmica, o que significa indagar a concepção do problema e como é possível resolvê-lo.

Isso não significa que a produção de conhecimento não esteja envolvida, mas o conhecimento é apenas parte dela. Os pesquisadores não produzirão o conhecimento para mudar o mundo. Eles produzirão conhecimento mudando o mundo. A ação coletiva ainda exige novos conhecimentos, novos meios, nova estrutura, novos atores.

Na pesquisa intervencionista, o pesquisador se torna um ator, não apenas um observador. O objeto de pesquisa torna-se uma ação coletiva, que considera tanto a reconstrução de saberes quanto de relações (organização de posições e interdependências dos atores).

Por que precisamos de PI?

Kitchner (1983) aponta que existem dois tipos de problemas: quebra-cabeças e problemas mal estruturados. Esses dois tipos de problemas diferem tanto em sua natureza epistêmica (isto é, nas maneiras pelas quais podem ser conhecidos) quanto nos procedimentos de tomada de decisão necessários para resolvê-los. Para problemas de quebra-cabeça, existem soluções corretas e cognoscíveis, enquanto problemas mal estruturados são aqueles para os quais existem suposições, evidências e opiniões conflitantes que podem levar a soluções diferentes e até contraditórias. Para resolver o primeiro, os processos metacognitivos são suficientes; para o segundo, são necessários processos cognitivos epistêmicos - isto é, questionar as maneiras pelas quais o conhecimento é produzido (Kitchner, 1983).

Os problemas de quebra-cabeça têm uma única resposta, correta ou incorreta, que está disponível para o indivíduo. A tarefa, portanto, é aplicar um procedimento de tomada de decisão particular e mecânico para encontrá-lo. Os quebra-cabeças não exigem a consideração de argumentos alternativos, a busca de novas evidências ou a avaliação da confiabilidade dos dados e fontes de informação (Kitchner, 1983).

Para problemas mal estruturados, não existem soluções únicas. São problemas que normalmente têm mais de uma conceituação ou solução potencialmente válida. O dilema está em decidir quais pressupostos teóricos melhor se encaixam no problema e nas evidências disponíveis, ou como integrá-los em uma única solução. As soluções possíveis são divergentes ou contraditórias. A solução para esse tipo de problema envolve reformular uma ou várias dessas perspectivas em um modelo mais geral do problema, ou redefini-lo (Kitchner, 1983).

Kitchner (1983) argumenta que certos tipos de problemas exigem questionar suposições mais profundas sobre a compreensão do problema, sua solução e como alcançá-lo. Em outras palavras, eles requerem cognição epistêmica.

A palavra epistêmica refere-se ao conhecimento sobre como o conhecimento é gerado. Nesse nível superior, o indivíduo toma consciência não apenas de seus próprios pensamentos, mas também do processo utilizado para gerar conhecimento (Kitchner, 1983, p. 225).

Kitchner (1983) sugere a existência de três níveis de cognição. No primeiro nível de cognição, os indivíduos realizam tarefas cognitivas básicas, como calcular, memorizar, ler, perceber e adquirir a linguagem. São processos pré-monitorados sobre os quais o conhecimento do mundo é construído. O segundo nível, metacognição, refere-se a processos usados para monitorar e regular o progresso cognitivo durante a execução de tarefas de nível 1. Isso inclui o conhecimento sobre tarefas cognitivas, as estratégias para resolvê-las, quando e como aplicar essas estratégias e avaliar seu sucesso ou fracasso. O terceiro nível, cognição epistêmica, envolve o monitoramento da natureza epistêmica dos problemas e do valor de verdade das soluções alternativas. Inclui a consciência dos limites e a certeza do conhecimento, bem como estratégias para avaliar e escolher soluções adequadas para diferentes tipos de problemas.

Juntos, a natureza dos problemas e a crescente instabilidade do objeto da pesquisa agrícola exigem cognição epistêmica. Significa questionar o problema e a forma como o conhecimento de suas soluções é produzido. Muitos dos problemas enfrentados na agricultura hoje em dia exigem a mudança da epistemologia do conhecimento para a ação.

Quais são os pré-requisitos para a realização de uma pesquisa intervencionista?

Hatchuel (2000) aponta três pré-requisitos para implementar a PI. O primeiro pré-requisito é reconhecer a natureza da ação coletiva: ela não pode ser reduzida a um único ator, uma regra universal ou um modelo mecânico de causa e efeito. É sempre complexo, relacional e situado. A segunda é que a pesquisa-intervenção busca tornar compreensível o que, em um momento de crise ou disfunção, se tornou confuso ou caótico. Isso significa ajudar os atores envolvidos a recuperar sua capacidade de ação coletiva, reconstruindo significados e referências que lhes permitam lidar com a situação. Em terceiro lugar, busca reconstruir os atores e a legitimidade por meio da ação coletiva. No cerne da pesquisa-intervenção está a ideia de que a ação coletiva é um processo de aprendizagem. Não se trata simplesmente de aplicar regras, implementar planos, seguir regulamentos ou pré-definir quem são os atores legítimos. Em vez disso, os próprios atores são transformados e ganham legitimidade no próprio processo de agir coletivamente, criando seus próprios princípios de racionalização.

A realização de pesquisas intervencionistas requer uma teoria do design que permita aos atores entenderem a ação coletiva e gerar novos conhecimentos e relacionamentos simultaneamente. Este modelo é exigente tanto do ponto de vista teórico quanto prático e normalmente envolve esforço sustentado e de longo prazo. A implementação de pesquisas intervencionistas também requer o desenvolvimento de novos conceitos e ferramentas de visualização para apoiar e viabilizar a produção de ações coletivas.

Podem os Living Labs ser considerados pesquisa intervencionista? Eles podem ser, mas não necessariamente são. Envolver agricultores e outras partes interessadas não necessariamente torna um intervencionista de pesquisa. A pesquisa intervencionista não se trata apenas de produzir conhecimento em conjunto com outros atores.  É claro que, ao fazê-lo, o objeto de pesquisa pode se tornar mais relevante, mas não necessariamente direciona para a produção de uma ação coletiva. Um laboratório vivo pode ser intervencionista se tiver como objetivo transformar o objeto de estudo.

Referências

Hatchuel, A. (2000). Intervention research and the production of knowledge. Cow up a tree. Knowing and learning for change in agriculture. Case studies from industrialised countries. Science Update, INRA Editions, Paris, 55–68.

Kitchner, K. S. (1983). Cognition, metacognition, and epistemic cognition: A three-level model of cognitive processing. Human development, 26(4), 222–232.

Midgley, G. (2000). Systemic Intervention. Em G. Midgley (Org.), Systemic Intervention: Philosophy, Methodology, and Practice (p. 113–133). Springer US. https://doi.org/10.1007/978-1-4615-4201-8_6

Virkkunen, J., & Newnham, D. (2013). The change laboratory: A tool for collaborative development of work and education. Springer Science & Business Media.

 

 

 

 

 

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