Objeto de uma atividade
Conceito e princípios do objeto de uma atividade
Por Marco Antonio Pereira Querol
O objeto de uma atividade é um dos
conceitos mais desafiadores tanto do ponto de vista teórico como pragmático. Ele
é um dos elementos mais importantes da atividade, sendo seu núcleo motivador,
aquilo que orienta as ações dos indivíduos. Ao mesmo tempo, é também um dos
elementos mais complexos e que geralmente consome mais tempo dos participantes
para analisar durante uma intervenção — e tempo é, hoje, um dos recursos mais
escassos. Mesmo quando há compreensão teórica do conceito, alcançar um consenso
sobre qual é o objeto de determinada atividade continua sendo um grande
desafio.
O próprio termo “objeto” pode gerar
equívocos. No cotidiano, tende-se a entendê-lo como algo separado, estático e
estável. No entanto, quando aplicado como conceito para compreender a motivação
de uma atividade coletiva, ele se mostra bem mais complexo: é disputado,
contraditório e parece estar em constante transformação.
O objetivo deste capítulo é esclarecer o
conceito de objeto da atividade, facilitando sua compreensão e refinando-o como
conceito teórico e analítico. Dessa forma, quero contribuir para que os
participantes de uma intervenção possam mais claramente compreender o seu
objeto e desenvolve-lo.
O
que é um objeto da atividade?
Tradicionalmente, o objeto é definido como
a motivação, o propósito, aquilo que satisfaz uma necessidade humana (Leont’ev, 1978; Miettinen, 2005). É também o alvo das ações dos sujeitos e
aquilo que está em processo de transformação. Essa definição é útil, mas, ao
analisar situações concretas e coletivas, torna-se evidente a dificuldade em
alcançar um consenso sobre qual é, de fato, o objeto em questão.
Figura 1 Representação da unidade de um objeto de uma
atividade e perguntas que precisam ser respondidas ao analisa-lo.
Desde uma visão dialética, um objeto pode
ser entendido como uma unidade formada por dois elementos: uma matéria prima ou
situação problemática que precisa ser transformada e um resultado esperado que
tem o potencial de satisfazê-la. Tal unidade é (Miettinen, 2005):
- ·
Fixa
e processual,
- ·
Conceitual
e material,
- ·
Individual
e coletiva, e
- ·
Essencialmente
contraditória
A seguir veremos cada uma desses
princípios.
A
essência de um objeto
Fixo
e Processual
O primeiro princípio é que um objeto está
em movimento. Geralmente identificamos o objeto como algo fixo, estático, algo
que não muda. O objeto de uma atividade parece repetitivo, mas é processual, ou
seja, ele está em transformação durante a execução da atividade e entre ciclos
de atividades. A cada ação a matéria prima vai mudando, ou um problema vai se
esclarecendo e se transformando. Não somente o aspecto material, mas também o
conceitual (como o entendemos) vai mudando.
Durante a realização de uma atividade, ou
seja, dentro de cada ciclo de uma atividade, o processo começa com o surgimento
de uma necessidade humana (momento 1). Essa necessidade gera um estado de insatisfação
e ansiedade. As necessidades podem ser tanto biológicas quanto sociais.
Como apontado por Leontiev (1978) não é a
necessidade que motiva, mas aquilo que tem a capacidade de satisfazê-la. É
quando o sujeito se depara com o objeto é que a motivação é formada. Ao se
deparar com o objeto, uma ideia ou conceito visualizado, os indivíduos formam
uma imagem ou representação dos resultados esperados. Ao tomar a decisão de
alcançar esse resultado visualizado, o objeto adquire o poder motivador
(momento 2) capaz de gerar volição e ação.
Em seguida os indivíduos começam a agir
para produzir os resultados esperados (momento 3). As ações podem ser individuais
ou em grupos. Cada ação e cada operação contribui direta ou indiretamente para
a construção do objeto. As ações se complementam contribuído para transformar a
situação inicial (matéria prima ou problema) e um produto ou serviço (Figura 2).
Figura 2 Esquema de Formação do objeto
Uma vez produzido o produto ou serviço,
esse é consumido, satisfazendo completa ou parcialmente, permanente ou
temporariamente a necessidade (momento 4) que deu origem. Assim termina o ciclo
da atividade.
A atividade não termina com a produção e
consumo do resultado esperado. Atividades são cíclicas. Elas persistem enquanto
a necessidade social existir. A construção de casas existirá enquanto houve
necessidade de moradia. Cuidados médicos existirão enquanto houver pessoas
doentes precisando de tratamento.
As atividades são cíclicas, aparentando
ciclos relativamente repetitivos. Porém as mudanças existem, podem ser pequenas
ou grandes, mas o objeto está sempre em desenvolvimento. Na sociedade moderna,
com o modelo de produção em massa de produtos e serviços padronizados pode
aparentar que o objeto é fixo e repetitivo. Porém cada vez que o produto ou serviço
é produzido, novo conhecimento é produzido e ele vai se transformando, tanto do
ponto de vista material quanto conceitual.
Por exemplo, se compararmos uma casa
atual, com uma casa do tempo dos nossos avós perceberemos várias mudanças,
tanto no material, tamanho, como no consumo de energia, isolamento térmico, tratamento
de resíduos entre outros. Contradições foram identificadas e resolvidas e novos
elementos foram surgindo.
Material e conceitual
O que nós vemos e sentimos com os sentidos
são percepções, interpretações feitas pelo nosso cérebro, mediada por experiências
prévias e conceitos existentes. O objeto de uma atividade, assim como toda a
realidade que nos rodeia é conceitual e material. Apesar de aparentarem ser
duas coisas separadas o conceito e o mundo material que ele representa são uma
e a mesma coisa. Um não existe sem o outro. Claro que podemos imaginar coisas
que não existem ou não ocorreram, criar histórias imaginárias, mas a imaginação
faz uso de experiências e conceitos preexistem que por sua vez surgiram da interação
com o mundo material. Do mesmo modo, o mundo material não existe para nós se não
o podemos conceitualizar, ou compreender, fazer sentido dele.
Um conceito é uma generalização. É a forma
como compreendemos algo. Ele envolve o conhecimento, mas não se limita a ele. Um
conceito não existe apenas dentro da cabeça dos indivíduos, mas são também
compartilhados por meio de representações discursivas, gestuais e visuais.
O conceito do objeto, assim como outros
conceitos, está em constante mudança, podendo variar de pessoa a pessoa, e até
para um mesmo indivíduo ao redor do tempo. Como apontado por Engeström (2024)
existem diferentes tipos de conceitos: protótipos, classificatórios,
processuais, sistêmicos e célula germinais, cada um com a sua função e
potencial de uso. Como já mencionado acima, tanto o aspecto material quanto
conceitual de um objeto está em constante mudança. Ao ser repetida uma
atividade, o conceito vai se transformando.
O conceito é mediador, podendo potencializar
ou limitar os resultados das ações humanas. Pode haver discrepâncias entre um conceito, ou
seja, a forma como entendemos algo, e a coisa em si que esse conceito visa
explicar, ou seja entre o conceitual e o material. Tais discrepâncias entre os
dois gera distúrbios, ou seja, pode comprometer os indivíduos a alcançarem os
resultados esperados.
Individual e coletivo
A terceira dimensão está relacionado a essência
social da atividade humana. As necessidades humanas são atendidas a partir de
atividades coletivas, ou seja, da colaboração de vários indivíduos. Através de
uma divisão do trabalho, as ações de indivíduos e grupos contribuem para a produção
de produtos e serviços.
Portanto, um princípio é que os objetos
das atividades humanas possuem uma natureza contraditória: são, ao mesmo tempo,
individuais e coletivos. O produto de uma atividade é sempre coletivo,
resultado da soma e da articulação de ações realizadas por diferentes
indivíduos. Ainda assim, cada pessoa se relaciona com esse objeto de forma
singular, de acordo com suas experiências, necessidades e motivações próprias.
Essa dupla condição faz com que o objeto
seja, simultaneamente, dependente e independente dos indivíduos. Dependente
porque precisa da ação de cada participante para existir na prática.
Independente porque o objeto coletivo transcende as intenções individuais,
constituindo-se como algo maior do que a contribuição isolada de cada sujeito.
No entanto, essa complexidade traz
consequências importantes. Como cada indivíduo atribui sentidos distintos ao
objeto, nem sempre existe clareza ou consenso sobre o significado social. Além
disso, é possível que alguns não conheçam plenamente o objeto ou não estejam
motivados em relação a ele. Essa diversidade de concepções pode gerar descoordenações
e desvios, comprometendo a coerência das ações e levando, muitas vezes, a
resultados indesejados. Assim, compreender a tensão entre o caráter individual
e coletivo do objeto é fundamental para analisar e desenvolver atividades
humanas.
Desvios e áreas cinzentas
Divergências entre conceitualizações do
objeto e / ou descoordenações de ações podem levam a desvios na atividade,
levando a que os resultados esperados não sejam alcançados, ou então que sejam alcançados
apenas de forma parcial (Figura 2).
Figura 3 Representação do desvio do resultado esperado
devido a descoordenação das ações que compõe uma atividade.
Outra possibilidade de distúrbio, ou seja,
situação em que os resultados desejados não são alcançados pode ocorrer devido
a uma atuação sobre o objeto incompleta ou menor do que a necessária para alcançar
o resultado necessário. Isso leva ao surgimento de uma área do objeto que não
recebe a atuação de ninguém, chamado de área cinzenta. Neste caso, a
necessidade é maior do que o alvo, gerando um resultado inferior ao esperado,
criando uma satisfação parcial das necessidades. Nesse caso, seria necessária
uma re- conceitualização do objeto
visando expandir a área alvo.
Figura 4 Representação da área cinzenta de um objeto.
A expansão do objeto
Como
já foi mencionado, o conceito de objeto de uma atividade não é estático: ele
pode se expandir, transformando tanto a compreensão do problema quanto nos
resultados esperados. A expansão pode ser entendida como uma mudança
qualitativa no objeto, geralmente um enriquecimento de suas qualidades, visando
a resolução de contradições dentro e entre elementos de sistemas de atividades
(Figura .
Figura 5 Representação da expansão de um objete de uma
atividade.
Para ilustrar o processo de expansão
peguemos como exemplo, a expansão da concepção da doença aterosclerose.
Concepção 1 – Objeto restrito
Inicialmente, a aterosclerose era
entendida principalmente como um problema de colesterol elevado e pressão
arterial alta. O objeto da atividade médica era, portanto, controlar esses
dois indicadores biológicos.
- Alvo: colesterol e pressão arterial.
- Solução
típica: uso de
medicamentos como losartana (para pressão) e atorvastatina (para
colesterol).
- Resultados: redução parcial dos riscos, mas com
foco limitado no tratamento da doença já instalada.
Concepção 2 – Objeto expandido
Com o tempo, a concepção da doença se
ampliou. Passou-se a reconhecer que a aterosclerose não é apenas resultado de
fatores biológicos isolados, mas consequência de um estilo de vida não
saudável. O objeto da atividade se expandiu: deixou de ser apenas
“colesterol e pressão” para incluir a vida cotidiana do paciente.
- Alvo: estilo de vida do paciente.
- Solução
típica: programas de
reeducação alimentar, prática de exercícios físicos, controle de estresse,
apoio psicológico.
- Resultados: não apenas tratamento, mas também prevenção,
melhoria da qualidade de vida e redução significativa da progressão da
doença.
Transformação da prática
Esse processo de expansão do objeto
transformou a própria atividade médica: de uma prática centrada em prescrição
de fármacos para uma abordagem multiprofissional e preventiva, envolvendo
médicos, nutricionistas, fisioterapeutas e psicólogos. Assim, os resultados
também se transformaram, de controle parcial da doença para uma melhora global
na saúde do paciente.
Considerações finais
O objetivo deste capítulo foi discutir o
que é um objeto e seus princípios. O objeto cpode ser entendido como uma unidade
dialética composta por três elementos básicos: aquilo que se pretende
transformar, a necessidade social latente que motiva a ação e os resultados
esperados na forma de produtos ou serviços capazes de satisfazer essa
necessidade.
O caráter desafiador do conceito decorre
exatamente de sua condição dialética: o objeto é processual e em constante
transformação, é simultaneamente individual e coletivo, material e conceitual.
Ele não é estático, mas atravessado por contradições que impulsionam o
movimento da atividade. Essa multiplicidade faz com que diferentes sujeitos
atribuam sentidos distintos ao mesmo objeto, o que pode gerar descoordenações,
discrepâncias e até distúrbios na atividade coletiva.
Por outro lado, é justamente a contradição
que abre espaço para o desenvolvimento expansivo do objeto. A expansão
representa o enriquecimento qualitativo do objeto, na medida em que busca
superar limites e resolver forças internas postas e mutualmente excludentes. Esse
processo de expansão pode ser facilitado pelo uso de artefatos culturais —
conceitos, modelos, representações — que ajudam os participantes a visualizar,
compreender e redesenhar novos objetos e novos sistemas de atividade.
Em síntese, compreender o objeto em sua
multidimensionalidade significa responder a três questões essenciais:
- O que se
quer transformar?
- Em que
se quer transformar?
- Por que
se quer transformar?
Assumir o objeto como contraditório,
processual e contestado não é um problema, mas sim a chave para entendê-lo como
uma fonte de movimento, de inovação e de mudança histórica nas atividades
humanas.
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