O que é aprendizagem?

 

Aprendizagem

Texto de Prof. Marco Querol

No dicionário da Cambridge aprendizado é definido como a atividade de obtenção de conhecimento, ou conhecimento ou parte de uma informação obtida a partir de estudo ou de experiência. Ao se fazer uma busca na internet sobre o termo aprendizagem podemos encontrar diferentes perspectivas que podem enfatizar os aspectos biológicos, psicológicos ou sociais. Diferentes teorias podem ser identificadas: aprender pela experiência, aprender fazendo, aprender participando ou aprender por tentativa e erro, dentre muitas outras. O aprendizado pode envolver mudanças nos indivíduos, no grupo, em comunidades ou até mesmo em elementos estruturais, incluindo processos e o ambiente (Ison et al., 2000).


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Para entender melhor o que é aprendizagem, é preciso olhar para sua história evolutiva. O aprendizado não é exclusivo dos seres humanos: ele já aparece nos primeiros animais bilaterais, junto com o surgimento do cérebro e da necessidade de tomar decisões em ambientes variáveis. O cérebro surgiu como centro de integração de estímulos muitas vezes conflitantes.

Desde uma perspectiva evolucionista, a primeira forma de aprendizagem foi a associação reflexa: quando uma ação era seguida de um resultado positivo, formava-se uma conexão neural que incentivava sua repetição. Nos vertebrados surgiu o aprendizado por tentativa e erro (reforço), que corresponde ao “aprender fazendo”, uma forma mais primitiva do aprendizado experimental. Nos mamíferos surgiu a capacidade de simular cenários alternativos e de aprender com ações não realizadas (contrafactuais). Entre os primatas, o desenvolvimento do córtex pré-frontal permitiu o que chamamos de “teoria da mente” e o aprendizado por imitação, próximo ao “aprender participando”.

Nos humanos, a linguagem revolucionou a aprendizagem. Ao repetir ações, passamos a nomeá-las, criando símbolos (palavras). A combinação de palavras possibilitou transmitir ideias e experiências, permitindo que uma pessoa aprendesse com a experiência de outra sem vivê-la diretamente.

No modo de produção artesanal, predominavam o aprender fazendo e o aprender imitando. O conhecimento era transmitido por demonstração prática ou pela linguagem, o que exigia reflexão e a capacidade de externalizar processos em palavras. Com a modernidade, surgiram atividades especializadas em ensinar, como escolas e universidades. Criou-se então uma divisão do trabalho: cientistas produzem conhecimento e o registram, enquanto professores o transmitem. Nesse modelo, aprender passou a significar adquirir conhecimento existente.

Além das formas já citadas (associação, tentativa e erro, imitação e transmissão pela linguagem), a aprendizagem experimental ganhou espaço (Kolb, 1984). Kolb (1984) propôs que as pessoas aprendem através de um ciclo contínuo de ação e reflexão. A aprendizagem por meio da prática foi desenvolvida por Wenger, que propõe o conceito de aprendizagem situada. Para Wenger, aprender não é apenas adquirir informações ou habilidades isoladas, mas é sempre um processo contextual, social e participativo, vinculado às práticas reais de uma comunidade. A aprendizagem se dá por meio da participação em atividades sociais significativas, e não pela simples transmissão de conhecimento de um “mestre” para um “aprendiz” (Wenger, 1999).

Outro exemplo de teoria de aprendizado é a aprendizagem baseada em problemas (problem-based learning), muito usada em escolas e universidades. Nesse caso, os alunos recebem um problema (por exemplo, um estudo de caso) e, ao buscar soluções, internalizam conhecimentos e habilidades (Barrows & Tamblyn, 1980).

Em uma crítica ao aprendizado individual por experiência surge o conceito de aprendizado social (Social Learning em inglês) que propõe que o aprendizado não se limita a experiência individual, mas em um contexto social (Bandura, 1977). Ele propõe que pessoas aprendem também por observação e imitação. Em intervenções esse conceito se expandiu e refere ao processo coletivo. Ele descreve um processo no qual cidadãos se envolvem em desenvolver uma solução mutualmente aceitável para problemas que afetam suas comunidades e suas vidas pessoais (Webler et al., 1995). Nesse contexto, aprender é chegar em um consenso coletivo e desenvolver juntos uma solução conjunta.

Na década de 1970 e 1980 surge uma abordagem de aprendizado chamado aprendizado epistêmico. Nesta linha, aprendizado é entendido como a quebra proposital e reestruturação de modelos mentais que suportam visões de mundo. Nesta abordagem o aprendiz passa por um período de caos, confusão antes de passar por uma reestruturação dos modelos mentais em um alto nível de complexidade permitindo o individuo a entender conceitos que antes eram opacos.

Como fazer sentido de tantas teorias de aprendizagem? Será que se trata de um mesmo fenômeno? Para fazer sentido dessa variedade de teorias apresentarei a seguir os níveis de aprendizado proposto por Gregory Bateson (1972). Porém antes disso podemos chegar a algumas conclusões. A aprendizagem pode se referir a mais do que aquisição de conhecimento ou mudança individual na cognição. Ela também pode envolver a transformação de artefatos culturais. Existem múltiplos tipos de aprendizagem. Independentemente da forma, a origem do conhecimento está na ação e interação com o meio.

Baseado em uma perspectiva evolucionista e nos conceitos de aprendizagem apresentados acima, sugiro que aprendizagem é o processo de mudança de uma estrutura — seja cognitiva (cérebro) ou cultural (conceitos, modelos, teorias, métodos, histórias) — que permite a indivíduos ou coletivos se adaptarem a variações do ambiente.

Os níveis de aprendizado

Engeström (1987), em seu livro Aprendizado Expansivo, inspirado nos níveis de aprendizado de Gregory Batson (1972), sugere que uma atividade pode se desenvolver em três níveis, os quais correspondem diretamente à hierarquia interna da própria atividade: operação, ação e atividade. Cada nível é regulado por diferentes fatores:

  • a operação, pelas condições;
  • a ação, pelos objetivos;
  • a atividade, pelo objeto.

Esses três níveis não existem de forma isolada, mas em uma relação dialética, ou seja, estão interdependentes e em constante transformação.

Nível I de aprendizado

O nível I corresponde ao nível da operação. Trata-se de um aprendizado inconsciente, que ocorre fazendo. Nesse caso, o objetivo não é gerar conhecimento, mas apenas realizar a operação. O aprendizado surge como um efeito colateral da prática.

Esse tipo de aprendizado pode se manifestar, por exemplo, como uma mudança inconsciente em uma operação ou no uso de uma ferramenta de nível primário (Wartofsky, 1979), isto é, um instrumento utilizado diretamente para transformar o objeto — como uma enxada ou um martelo.

Nível II de aprendizado

O nível II está ligado ao nível da ação. Aqui, o aprendizado é consciente e envolve uma avaliação constante dos êxitos e fracassos no processo de alcançar a solução. Nesse caso, o objeto da ação é o próprio aprendizado.

Esse tipo de aprendizado está relacionado à produção do que Wartofsky (1979) denomina artefatos secundários: representações que servem para preservar e transmitir habilidades relacionadas ao uso de artefatos primários. Essas representações podem assumir diversas formas — símbolos, palavras, modelos, figuras, esquemas, gráficos ou até gestos — e refletem modos de ação incorporados.

Engeström (1987) subdivide o aprendizado de nível II em duas modalidades:

  • IIa — aprendizado reprodutivo: o problema é dado e o sujeito busca a solução por meio de tentativas e erros.
  • IIb — aprendizado produtivo: o problema também é dado, mas a busca pela solução ocorre de forma consciente e experimental, envolvendo um processo sistemático de investigação.

Nível III de aprendizado

No nível III, o contexto do problema é expandido. Enquanto no aprendizado de nível II o problema é dado e cabe ao sujeito buscar a solução, no nível III o problema é construído. Quando o problema é apresentado de forma pré-definida, o sujeito passa a questionar o seu significado e a motivação para resolvê-lo: como surgiu, quem o formulou, com qual propósito e em benefício de quem.

Esse tipo de aprendizado é impulsionado pela necessidade de resolver contradições e envolve o uso do que Wartofsky (1979) chama de artefatos terciários. Esses artefatos permitem a livre construção, na imaginação, de novas regras e práticas, diferentes daquelas em vigor no presente. São ideias e visões que possibilitam a criação e a aplicação de novos artefatos secundários. O aprendizado de nível III envolve, portanto, a construção e a aplicação de visões e ideologias. No entanto, não se limita apenas à imaginação: trata-se de um processo que transforma a prática por meio da criação de novos modos de agir.

O aprendizado de tipo III é motivado por uma situação de vínculo duplo, onde o indivíduo está entre duas forças opostas. Tal situação pode ser entendida como manifestação de contradições dentro e entre os elementos do sistema de atividade ou sistemas de atividade.

Esse é o tipo de aprendizado que Engeström (1987) denomina aprendizado expansivo, que será abordado em mais detalhe adiante. Os três níveis de aprendizado estão resumidos na Tabela I.

Tabela 1 A hierarquia dos níveis de aprendizado segundo.

Nível de aprendizado

Sujeito

Instrumento

Objeto

I - Operação

Indivíduo não consciente

Metodologia, uma ideologia

Contexto (todo o sistema de atividade)

II – Ação

Indivíduo consciente

Modelos

Problema dado

III - Atividade

Coletivo

Ferramentas

Resistência

 

Os três níveis de aprendizado propostos por Bateson (1972) e interpretados por Engeström (1987) põem ser comparados aos níveis propostos por (Kitchner, 1983): cognição, metacognição e cognição epistêmica. A palavra epistêmica se refere ao conhecimento sobre como o conhecimento é gerado. Nesse último nível o indivíduo se torna consciente não somente sobre seus pensamentos, mas sobre o processo que usa para gerar conhecimento Kitchner (1983, p. 225):   

No primeiro nível da cognição (nível 1), os indivíduos realizam tarefas cognitivas como calcular, memorizar, ler, perceber, adquirir linguagem, etc. Esses são os processos cognitivos pré-monitorados sobre os quais o conhecimento do mundo é construído.

O segundo nível (nível 2), a metacognição, é definido como os processos acionados para monitorar o progresso cognitivo quando um indivíduo está envolvido em tarefas ou objetivos cognitivos do nível 1, como os listados acima. Os processos metacognitivos incluem o conhecimento sobre tarefas cognitivas (por exemplo, como memorizar uma lista de palavras), sobre estratégias particulares que podem ser utilizadas para resolver a tarefa (por exemplo, repetir a palavra em voz alta), sobre quando e como a estratégia deve ser aplicada (por exemplo, quando é necessário memorizar as capitais dos estados na escola), e sobre o sucesso ou fracasso de qualquer um desses processos.

O terceiro nível (nível 3), a cognição epistêmica, é caracterizado como os processos que um indivíduo aciona para monitorar a natureza epistêmica dos problemas e o valor de verdade das soluções alternativas. Inclui o conhecimento do indivíduo sobre os limites do saber (por exemplo, algumas coisas podem ser conhecidas e outras não), a certeza do saber (por exemplo, se os critérios para conhecer (por exemplo, sabe-se a resposta para uma pergunta se ela puder ser conclusivamente verificada cientificamente). Isso também inclui as estratégias usadas para identificar e escolher entre as formas de solução exigidas para diferentes tipos de problemas.

Questionar os limites do seu próprio conhecimento e a forma como ele é gerado é essencial, fundamental para promover transformações expansivas. A proposta de Kitchner (1983) é interessante pois argumenta que certos tipos de problemas exigem questionar as pressuposições profundas sobre o entendimento do problema, sua solução e como chegar a elas. Em outras palavras, aprendizado expansivo exige cognição epistêmica.

Kitchner (1983) apontam que existem dois tipos de problemas: quebra-cabeças (puzzles em inglês) e problemas mal-estruturados (ill-structured em inglês). Esses dois tipos de problemas diferem tanto em sua natureza epistêmica (isto é, nas formas pelas quais podem ser conhecidos) quanto no procedimento de tomada de decisão necessário para resolvê-los. Para problemas quebra-cabeças existem soluções corretas e conhecíveis, já os problemas “mal estruturados” são problemas para os quais há pressupostos, evidências e opiniões conflitantes que podem levar a diferentes soluções e contraditórias. Para resolver o primeiro, os processos metacognitivos são suficientes, para o segundo são necessários processos cognitivos epistêmicos, ou seja, questionar a forma como o conhecimento é produzido.

Os problemas quebra-cabeças têm uma única resposta, correta ou incorreta, que está disponível ao indivíduo. A tarefa, portanto, é aplicar um procedimento particular e mecânico de tomada de decisão para encontrá-la. Os quebra-cabeças não exigem considerar argumentos alternativos, buscar novas evidências ou avaliar a confiabilidade de dados e fontes de informação (Kitchner, 1983).

Para os problemas mal estruturados não existem soluções únicas. São problemas que tipicamente tem mais de uma conceitualizarão ou soluções potencialmente válidas. O dilema consiste em decidir quais pressupostos teóricos se ajustam melhor ao problema e às evidências disponíveis, ou como integrá-los em uma solução única. A possíveis soluções são divergentes ou contraditórias A solução para esse tipo de problema consiste em reformular uma ou várias dessas perspectivas em um modelo mais geral do problema ou redefini-lo (Kitchner, 1983).

Uma das diferenças da proposta de cognição epistêmica de Kitchner (1983) e o aprendizado expansivo de Engeström (1987) é que no último, o aprendizado é atividade coletiva, e não uma ação individual. Engeström (1987), vai um passo adiante sugerindo o tipo de ações, instrumentos e princípios que podem ser usados para facilitar esse tipo de aprendizado.

Referências

Bandura, A. (1977). Social learning theory (V. 1). Prentice hall Englewood Cliffs, NJ.

Barrows, H. S., & Tamblyn, R. M. (1980). Problem-based learning: An approach to medical education. Springer Publishing Company.

Ison, R., High, C., Blackmore, C., & Cerf, M. (2000). Theoretical frameworks for learning-based approaches to change in industrialised-country agricultures. LEARN. eds. Cow up a Tree. Knowing and Learning for Change in Agriculture. Case Studies from Industrialised Countries. INRA (Institut National de la Recherche Agronomique) Editions, Paris, 31–54.

Kitchner, K. S. (1983). Cognition, metacognition, and epistemic cognition: A three-level model of cognitive processing. Human development, 26(4), 222–232.

Kolb, D. (1984). Experiential Learning—Experience as the source of learning and development. Prentice-Hall Inc., Englewood Cliffs, NJ.

Webler, T., Kastenholz, H., & Renn, O. (1995). Public participation in impact assessment: A social learning perspective. Environmental Impact Assessment Review, 15(5), 443–463. https://doi.org/10.1016/0195-9255(95)00043-E

Wenger, E. (1999). Communities of practice: Learning, meaning, and identity. Cambridge university press.

 

 

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