O que é aprendizagem?
Aprendizagem
Texto
de Prof. Marco Querol
https://open.spotify.com/episode/4cyTmEvrmgyCkrDFz3ZWb2?si=9iYsvvNcQiOwGqBVoarR4A
Para entender melhor o que é
aprendizagem, é preciso olhar para sua história evolutiva. O aprendizado não é
exclusivo dos seres humanos: ele já aparece nos primeiros animais bilaterais,
junto com o surgimento do cérebro e da necessidade de tomar decisões em
ambientes variáveis. O cérebro surgiu como centro de integração de estímulos
muitas vezes conflitantes.
Desde uma perspectiva evolucionista, a
primeira forma de aprendizagem foi a associação reflexa: quando uma ação era
seguida de um resultado positivo, formava-se uma conexão neural que incentivava
sua repetição. Nos vertebrados surgiu o aprendizado por tentativa e erro
(reforço), que corresponde ao “aprender fazendo”, uma forma mais primitiva do
aprendizado experimental. Nos mamíferos surgiu a capacidade de simular cenários
alternativos e de aprender com ações não realizadas (contrafactuais). Entre os
primatas, o desenvolvimento do córtex pré-frontal permitiu o que chamamos de
“teoria da mente” e o aprendizado por imitação, próximo ao “aprender
participando”.
Nos humanos, a linguagem revolucionou a
aprendizagem. Ao repetir ações, passamos a nomeá-las, criando símbolos
(palavras). A combinação de palavras possibilitou transmitir ideias e
experiências, permitindo que uma pessoa aprendesse com a experiência de outra
sem vivê-la diretamente.
No modo de produção artesanal,
predominavam o aprender fazendo e o aprender imitando. O conhecimento era
transmitido por demonstração prática ou pela linguagem, o que exigia reflexão e
a capacidade de externalizar processos em palavras. Com a modernidade, surgiram
atividades especializadas em ensinar, como escolas e universidades. Criou-se
então uma divisão do trabalho: cientistas produzem conhecimento e o registram,
enquanto professores o transmitem. Nesse modelo, aprender passou a significar
adquirir conhecimento existente.
Além das formas já citadas (associação,
tentativa e erro, imitação e transmissão pela linguagem), a aprendizagem
experimental ganhou espaço (Kolb, 1984). Kolb (1984) propôs que as pessoas
aprendem através de um ciclo contínuo de ação e reflexão. A aprendizagem por
meio da prática foi desenvolvida por Wenger, que propõe o conceito de aprendizagem
situada. Para Wenger, aprender não é apenas adquirir informações ou habilidades
isoladas, mas é sempre um processo contextual, social e participativo,
vinculado às práticas reais de uma comunidade. A aprendizagem se dá por meio da
participação em atividades sociais significativas, e não pela simples
transmissão de conhecimento de um “mestre” para um “aprendiz” (Wenger, 1999).
Outro exemplo de teoria de aprendizado
é a aprendizagem baseada em problemas (problem-based learning), muito
usada em escolas e universidades. Nesse caso, os alunos recebem um problema
(por exemplo, um estudo de caso) e, ao buscar soluções, internalizam
conhecimentos e habilidades (Barrows & Tamblyn, 1980).
Em uma crítica ao aprendizado
individual por experiência surge o conceito de aprendizado social (Social
Learning em inglês) que propõe que o aprendizado não se limita a
experiência individual, mas em um contexto social (Bandura, 1977). Ele propõe que pessoas aprendem
também por observação e imitação. Em intervenções esse conceito se expandiu e
refere ao processo coletivo. Ele descreve um processo no qual cidadãos se
envolvem em desenvolver uma solução mutualmente aceitável para problemas que
afetam suas comunidades e suas vidas pessoais (Webler et al., 1995). Nesse contexto, aprender é chegar em
um consenso coletivo e desenvolver juntos uma solução conjunta.
Na década de 1970 e 1980 surge uma
abordagem de aprendizado chamado aprendizado epistêmico. Nesta linha,
aprendizado é entendido como a quebra proposital e reestruturação de modelos
mentais que suportam visões de mundo. Nesta abordagem o aprendiz passa por um
período de caos, confusão antes de passar por uma reestruturação dos modelos
mentais em um alto nível de complexidade permitindo o individuo a entender
conceitos que antes eram opacos.
Como fazer sentido de tantas teorias de
aprendizagem? Será que se trata de um mesmo fenômeno? Para fazer sentido dessa
variedade de teorias apresentarei a seguir os níveis de aprendizado proposto
por Gregory Bateson (1972). Porém antes disso podemos chegar a algumas
conclusões. A aprendizagem pode se referir a mais do que aquisição de
conhecimento ou mudança individual na cognição. Ela também pode envolver a
transformação de artefatos culturais. Existem múltiplos tipos de aprendizagem.
Independentemente da forma, a origem do conhecimento está na ação e interação
com o meio.
Baseado em uma perspectiva
evolucionista e nos conceitos de aprendizagem apresentados acima, sugiro que
aprendizagem é o processo de mudança de uma estrutura — seja cognitiva
(cérebro) ou cultural (conceitos, modelos, teorias, métodos, histórias) — que
permite a indivíduos ou coletivos se adaptarem a variações do ambiente.
Os níveis de aprendizado
Engeström
(1987), em seu livro Aprendizado Expansivo, inspirado nos níveis de
aprendizado de Gregory Batson (1972), sugere que uma atividade pode se
desenvolver em três níveis, os quais correspondem diretamente à hierarquia
interna da própria atividade: operação, ação e atividade. Cada nível é regulado
por diferentes fatores:
- a operação, pelas condições;
- a ação, pelos objetivos;
- a atividade, pelo objeto.
Esses
três níveis não existem de forma isolada, mas em uma relação dialética, ou
seja, estão interdependentes e em constante transformação.
Nível
I de aprendizado
O
nível I corresponde ao nível da operação. Trata-se de um aprendizado
inconsciente, que ocorre fazendo. Nesse caso, o objetivo não é gerar
conhecimento, mas apenas realizar a operação. O aprendizado surge como um
efeito colateral da prática.
Esse
tipo de aprendizado pode se manifestar, por exemplo, como uma mudança
inconsciente em uma operação ou no uso de uma ferramenta de nível primário
(Wartofsky, 1979), isto é, um instrumento utilizado diretamente para
transformar o objeto — como uma enxada ou um martelo.
Nível
II de aprendizado
O
nível II está ligado ao nível da ação. Aqui, o aprendizado é consciente e
envolve uma avaliação constante dos êxitos e fracassos no processo de alcançar
a solução. Nesse caso, o objeto da ação é o próprio aprendizado.
Esse
tipo de aprendizado está relacionado à produção do que Wartofsky (1979)
denomina artefatos secundários: representações que servem para preservar e
transmitir habilidades relacionadas ao uso de artefatos primários. Essas
representações podem assumir diversas formas — símbolos, palavras, modelos,
figuras, esquemas, gráficos ou até gestos — e refletem modos de ação
incorporados.
Engeström
(1987) subdivide o aprendizado de nível II em duas modalidades:
- IIa — aprendizado reprodutivo: o
problema é dado e o sujeito busca a solução por meio de tentativas e
erros.
- IIb — aprendizado produtivo: o
problema também é dado, mas a busca pela solução ocorre de forma
consciente e experimental, envolvendo um processo sistemático de
investigação.
Nível III de
aprendizado
No nível
III, o contexto do problema é expandido. Enquanto no aprendizado de nível II o
problema é dado e cabe ao sujeito buscar a solução, no nível III o problema é
construído. Quando o problema é apresentado de forma pré-definida, o sujeito
passa a questionar o seu significado e a motivação para resolvê-lo: como
surgiu, quem o formulou, com qual propósito e em benefício de quem.
Esse tipo
de aprendizado é impulsionado pela necessidade de resolver contradições e
envolve o uso do que Wartofsky (1979) chama de artefatos terciários. Esses
artefatos permitem a livre construção, na imaginação, de novas regras e
práticas, diferentes daquelas em vigor no presente. São ideias e visões que
possibilitam a criação e a aplicação de novos artefatos secundários. O
aprendizado de nível III envolve, portanto, a construção e a aplicação de
visões e ideologias. No entanto, não se limita apenas à imaginação: trata-se de
um processo que transforma a prática por meio da criação de novos modos de
agir.
O
aprendizado de tipo III é motivado por uma situação de vínculo duplo, onde o
indivíduo está entre duas forças opostas. Tal situação pode ser entendida como
manifestação de contradições dentro e entre os elementos do sistema de
atividade ou sistemas de atividade.
Esse é o
tipo de aprendizado que Engeström (1987) denomina aprendizado expansivo, que
será abordado em mais detalhe adiante. Os três níveis de aprendizado estão
resumidos na Tabela I.
Tabela 1 A hierarquia dos níveis de aprendizado
segundo.
Nível
de aprendizado |
Sujeito |
Instrumento |
Objeto |
I
- Operação |
Indivíduo
não consciente |
Metodologia,
uma ideologia |
Contexto
(todo o sistema de atividade) |
II
– Ação |
Indivíduo
consciente |
Modelos |
Problema
dado |
III
- Atividade |
Coletivo |
Ferramentas |
Resistência
|
Os
três níveis de aprendizado propostos por Bateson (1972) e interpretados por
Engeström (1987) põem ser comparados aos níveis propostos por (Kitchner, 1983): cognição,
metacognição e cognição epistêmica. A palavra
epistêmica se refere ao conhecimento sobre como o conhecimento é gerado. Nesse
último nível o indivíduo se torna consciente não somente sobre seus
pensamentos, mas sobre o processo que usa para gerar conhecimento Kitchner
(1983, p. 225):
No
primeiro nível da cognição (nível 1), os indivíduos realizam tarefas cognitivas
como calcular, memorizar, ler, perceber, adquirir linguagem, etc. Esses são os
processos cognitivos pré-monitorados sobre os quais o conhecimento do mundo é
construído.
O
segundo nível (nível 2), a metacognição, é definido como os processos acionados
para monitorar o progresso cognitivo quando um indivíduo está envolvido em
tarefas ou objetivos cognitivos do nível 1, como os listados acima. Os
processos metacognitivos incluem o conhecimento sobre tarefas cognitivas (por
exemplo, como memorizar uma lista de palavras), sobre estratégias particulares
que podem ser utilizadas para resolver a tarefa (por exemplo, repetir a palavra
em voz alta), sobre quando e como a estratégia deve ser aplicada (por exemplo,
quando é necessário memorizar as capitais dos estados na escola), e sobre o
sucesso ou fracasso de qualquer um desses processos.
O
terceiro nível (nível 3), a cognição epistêmica, é caracterizado como os
processos que um indivíduo aciona para monitorar a natureza epistêmica dos
problemas e o valor de verdade das soluções alternativas. Inclui o conhecimento
do indivíduo sobre os limites do saber (por exemplo, algumas coisas podem ser
conhecidas e outras não), a certeza do saber (por exemplo, se os critérios para
conhecer (por exemplo, sabe-se a resposta para uma pergunta se ela puder ser
conclusivamente verificada cientificamente). Isso também inclui as estratégias
usadas para identificar e escolher entre as formas de solução exigidas para
diferentes tipos de problemas.
Os
problemas quebra-cabeças têm uma única resposta, correta ou incorreta, que está
disponível ao indivíduo. A tarefa, portanto, é aplicar um procedimento
particular e mecânico de tomada de decisão para encontrá-la. Os
quebra-cabeças não exigem considerar argumentos alternativos, buscar novas
evidências ou avaliar a confiabilidade de dados e fontes de informação (Kitchner, 1983).
Para
os problemas mal estruturados não existem soluções únicas. São problemas que
tipicamente tem mais de uma conceitualizarão ou soluções potencialmente
válidas. O dilema consiste em decidir quais pressupostos teóricos se ajustam
melhor ao problema e às evidências disponíveis, ou como integrá-los em uma
solução única. A possíveis soluções são divergentes ou contraditórias A solução
para esse tipo de problema consiste em reformular uma ou várias dessas
perspectivas em um modelo mais geral do problema ou redefini-lo (Kitchner, 1983).
Uma
das diferenças da proposta de cognição epistêmica de Kitchner (1983) e o
aprendizado expansivo de Engeström (1987) é que no último, o aprendizado é
atividade coletiva, e não uma ação individual. Engeström (1987), vai um passo
adiante sugerindo o tipo de ações, instrumentos e princípios que podem ser
usados para facilitar esse tipo de aprendizado.
Referências
Bandura, A.
(1977). Social learning theory (V. 1). Prentice hall Englewood Cliffs,
NJ.
Barrows, H. S., & Tamblyn, R. M. (1980). Problem-based
learning: An approach to medical education. Springer Publishing Company.
Ison, R., High, C., Blackmore, C., & Cerf, M.
(2000). Theoretical frameworks for learning-based approaches to change in
industrialised-country agricultures. LEARN. eds. Cow up a Tree. Knowing and
Learning for Change in Agriculture. Case Studies from Industrialised Countries.
INRA (Institut National de la Recherche Agronomique) Editions, Paris,
31–54.
Kitchner, K. S. (1983). Cognition, metacognition, and
epistemic cognition: A three-level model of cognitive processing. Human
development, 26(4), 222–232.
Kolb, D. (1984). Experiential Learning—Experience
as the source of learning and development. Prentice-Hall Inc., Englewood
Cliffs, NJ.
Webler, T., Kastenholz, H., & Renn, O. (1995).
Public participation in impact assessment: A social learning perspective. Environmental
Impact Assessment Review, 15(5), 443–463.
https://doi.org/10.1016/0195-9255(95)00043-E
Wenger, E. (1999). Communities of practice:
Learning, meaning, and identity. Cambridge
university press.
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