7. Planejamento Operacional e Coleta de Dados

Formação de grupos de planejamento e coleta de dados em um Laboratório de Mudança

 

Marco Antonio Pereira Querol1 e Renata Matsmoto2, 3

1Departamento de Engenharia Agronômica, Universidade Federal de Sergipe, Brasil.

2 Auditora-Fiscal do Trabalho, Ministério do Trabalho e Emprego – MTE/Brasil.

3 Doutoranda na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, Brasil.

 

Uma vez aprovada a realização de um Laboratório de Mudança (LM) pelos gestores, estabelecido o compromisso institucional de apoio e assegurados os recursos necessários, inicia-se a etapa crucial de planejamento. A condução das sessões, embora seja o aspecto mais visível do processo, corresponde apenas à ponta do iceberg, representando uma fração relativamente pequena do tempo investido pelo pesquisador. Grande parte do trabalho concentra-se na preparação: coleta e seleção de dados-espelho, análise preliminar, organização dos materiais e definição da dinâmica de cada encontro.



A fase de coleta e análise de dados corresponde ao que se denomina fenomenologia na metodologia de Pesquisa de Desenvolvimento do Trabalho (Developmental Work Research, em inglês) (Engestrom, 1987), também frequentemente associada à etnografia. Além de servir de dados para a pesquisa, essa etapa, realizada antes do início das sessões, tem como principal objetivo preparar a equipe de pesquisadores-intervencionistas, possibilitando-lhes compreender as contradições e o funcionamento do sistema ou dos sistemas de atividade envolvidos no estudo. Além de subsidiar a compreensão inicial do contexto, essa fase orienta o planejamento das sessões e apoia a seleção dos dados-espelho que serão utilizados ao longo da intervenção.

Diante disso, surge a questão central: como planejar um LM de forma efetiva? Quais são os objetivos gerais de cada sessão? Que dados-espelho devem ser coletados e como selecioná-los? Quais técnicas podem ser empregadas para potencializar a participação e a aprendizagem? E de que maneira realizar a análise preliminar que sustentará as discussões? Este artigo busca explorar essas questões, oferecendo subsídios práticos e teóricos para o planejamento de um LM.

Formação dos grupos de planejamento

Uma das primeiras etapas é a formação dos grupos de planejamento. Como mencionado na postagem anterior existem três grupos de planejamento: estratégico, metodológico e operacional. Virkkunen e Newnham (2015) não diferencia o grupo de planejamento entre metodológico  e operacional (Virkkunen & Newnham, 2015). Porém observamos que na execução dos LM que o grupo de planejamento se dividia de forma natural em dois, um formado por pesquisadores, o planejamento metodológico e outro pelos participantes, o planejamento operacional. Essas experiências, mostram que a construção de um grupo operacional, aberto para todos os participantes, entre sessões  vem se mostrando uma estratégia interessante para aumentar a eficácia e sustentabilidade das intervenções (Querol, 2025), pois permite a consolidação tanto do aprendizado do conteúdo das sessões como do método.

Grupo

Objetivo

Composição

Planejamento estratégico

Definir atividade, piloto e formas de apoio

Pesquisadores e tomadores de decisões estratégicas

Planejamento metodológico

Analisar, formular hipóteses, avaliar direções, necessidades de ajustes e artefatos auxiliares

Pesquisadores com diferentes níveis de experiência

Planejamento operacional

Refletir e ajustar a intervenção

Pesquisadores intervencionista e participantes

Tabela 1: Grupos de planejamento, seus objetivos e composição.

A negociação, o planejamento estratégico define a atividade a ser desenvolvida, a unidade piloto e linca a intervenção com as outras ações de desenvolvimento estratégico da atividade (Virkkunen & Newnham, 2013). Esse grupo é composto pelo pesquisador e a gestão e deve ser permanente contínuo durante as sessões, não se limitando a fase inicial.

O planejamento metodológico visa planejar discutir quais dados espelho coletar, fazer análises, formular hipóteses de contradições, avaliar o aprendizado entre sessões, e definir o objetivo geral das sessões e necessidade de ajustes, assim como definir possíveis estímulos a serem usados nas mesmas. Esse grupo é composto majoritariamente pelos pesquisadores, o que as vezes é chamado grupo de especialistas.

O planejamento metodológico é fundamental em especial para que haja o aprendizado entre os pesquisadores. As trocas entre os pesquisadores mais experientes e os novos, discutindo sobre os dados a cada sessão e planejando o que será feito na sequência ajuda os novatos a concretizarem o aprendizado teórico e a conseguir enxergar a teoria na prática. É vivenciando que se aprende. Essa discussão enriquece e vai muito além do que simplesmente ler um manual para aplicá-lo. Porque cada LM tem suas peculiaridades e requer adaptações e os pesquisadores precisam em conjunto discutir para continuamente aprenderem, a cada nova intervenção.

A ideia de criar um grupo formado operacional majoritariamente com os participantes veio do relato da primeira pesquisa ação conduzida por Kurt Lewin e colegas (Lippitt, 1949). Nessa intervenção os pesquisadores apontaram o grupo de planejamento como uma inovação que surgiu quando os participantes ao passarem em frente da reunião de planejamento dos pesquisadores perguntaram se podiam participar. O grupo foi aumentando e se mostram um espaço extremamente valioso de aprendizado tanto aos pesquisadores como os participantes.

O planejamento operacional visa refletir sobre o aprendizado ocorrido em cada sessão, o que foi aprendido, impressões, possíveis problemas, imprevistos e desafios ocorridos. Visa também pensar na necessidade de possíveis ajustes operacionais, como quem convidar para as próximas sessões, adaptar os dados espelho e segundos estímulos a realidade dos participantes.  Esse grupo é composto pelo pesquisador intervencionista e os participantes mais engajados. Esse grupo geralmente pode ser formado inicialmente por poucas pessoas, que se mostraram mais interessadas no LM durante a coleta de dados espelho, e posteriormente ir aumentando com os agentes mais ativos. É sugerido que esse grupo seja aberto para todos os participantes interessados.

Um exemplo de grupo de planejamento operacional ocorreu em uma intervenção com auditores-fiscais do trabalho (AFT) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE/Brasil) visando o desenvolvimento da atividade da inspeção do trabalho. Nesta intervenção foi criado um grupo de planejamento que inicialmente era formado por duas pessoas (a pesquisadora e um participante interessado). Com o andar das sessões, o número de participantes aumentou, voluntária e progressivamente, até alcançar o total de seis, sendo sua característica principal comum serem os mais agentivos.

O grupo foi um espaço importante para permitir: 1) a participação de um sujeito experiente e interessado, que foi prejudicado pelo cronograma final de datas das sessões que foram negociadas com a maioria dos participantes após a oficina preliminar; 2) esclarecimentos sobre dúvidas teóricas; 3) a continuação das discussões realizadas durante as sessões do LM; 4) avaliação do andamento dos trabalhos e reflexão sobre a necessidade de mudança de rumo ou de adoção de outra estratégia de abordagem; 5) trocas de ideias sobre os próximos estímulos, tanto primeiros quanto segundos estímulos, que poderiam ser utilizados a cada nova sessão; 6) atualização sobre o andamento da pesquisa para aqueles que por qualquer motivo tiveram que se ausentar em sessões anteriores; 7) informes sobre ações consequenciais que estes participantes iniciaram em seus locais de trabalho, em consequência do LM; 8) decisão coletiva de como incorporar esses informes nas sessões do LM subsequentes e; 9) espaço de apoio para os participantes mais agentivos se auxiliarem mutuamente, com ideias de como desenvolver e customizar as soluções que estavam encabeçando nas suas unidades descentralizadas face às diferentes especificidades.

Coleta de dados

A coleta de dados preliminares tem um objetivo não somente de serem usados na pesquisa, mas também de ajudar os pesquisadores a entenderem e formular hipóteses sobre a atividade a ser desenvolvida e produzir dados espelho a serem usados durantes as sessões.

Dentre os dados preliminares se seleciona dados que serão utilizados nas sessões como primeiro estímulo, que são chamados de dados espelho. Um dado espelho recebe esse nome pois reflete as práticas e elementos da realidade de uma atividade(Querol et al., 2011; Sannino, 2015; Virkkunen & Newnham, 2013). São exemplos de dados-espelho: falas sobre problemas, registros históricos, casos de distúrbios e exemplos de situações bem-sucedidas. Esses dados funcionam como o primeiro estímulo durante as sessões. É importante destacar, contudo, que os primeiros estímulos não se restringem aos dados-espelho: podem incluir também modelos ou resultados de análises realizadas em sessões anteriores. Além disso, os dados-espelho podem se referir não apenas ao presente, mas também ao passado e a projeções de futuro.

A coleta desses dados deve ser prevista já na fase de negociação da intervenção. Quando utilizada também para fins de pesquisa, precisa ser detalhada em um projeto submetido e aprovado por um comitê de ética, em conformidade com as normas aplicáveis às pesquisas em ciências humanas que envolvem dados de pessoas.

Métodos de coleta de dados

A coleta de dados pode ser realizada por meio de diferentes métodos, como entrevistas, shadowing (acompanhamento próximo), observação participante, análises coletivas e diários de distúrbios. Também é possível coletar dados espelho da oficina e das próprias sessões do LM. Em alguns casos de intervenção, as falas dos participantes em encontros anteriores foram utilizadas como dados-espelho, servindo de recurso útil para fomentar e aprofundar as discussões. Além das fontes de dados espelho que serão mencionadas a seguir também podemos citar a aplicação de questionários e o uso de documentos e vídeos da internet.

É importante enfatizar que esses dados podem servir tanto para fins de pesquisa quanto como dados-espelho a serem utilizados nas sessões do LM. Por isso, recomenda-se que a coleta seja conduzida com rigor metodológico, assegurando registros sistemáticos e armazenamento adequado.

A seguir, apresentamos brevemente cada um desses métodos.

Entrevistas

Uma das formas mais clássicas de coleta de dados é a realização de entrevistas com atores-chave. Uma estratégia possível para a seleção dos entrevistados consiste em, inicialmente, recorrer à gestão ou a contatos dentro da organização e, em seguida, aplicar o método da “bola de neve”, em que cada entrevistado indica outros potenciais participantes. Dependendo do foco do estudo, alguns perfis podem ser mais relevantes que outros. Por exemplo, para obter informações sobre a história da atividade, é recomendável entrevistar pessoas com maior tempo de experiência — inclusive aquelas que já se aposentaram.

Na abordagem, o pesquisador deve apresentar de forma clara os objetivos da pesquisa, explicar o uso que será feito dos dados e expor os termos de confidencialidade.

As entrevistas podem gerar informações valiosas sobre a trajetória histórica da atividade, os principais distúrbios enfrentados, o funcionamento atual, as concepções sobre a origem ou as causas dos problemas, as tentativas anteriores de solucioná-los, os resultados obtidos e as sugestões sobre o que poderia ser feito para superá-los.

Nas entrevistas voltadas à obtenção de dados históricos, o entrevistador pode solicitar, por exemplo: “Poderia me contar a história da atividade? Como ela surgiu, por quem e por quê?”. Um recurso útil para estimular a memória do entrevistado é o uso de uma linha do tempo: o pesquisador oferece uma folha com uma linha e pede que o participante registre a data e os eventos que considera mais relevantes, comentando-os à medida que os relata. Durante esse processo, o entrevistador pode tomar notas, realizar a gravação (com consentimento) e utilizar os elementos do sistema de atividade como guia para estimular diferentes aspectos a serem abordados. É recomendável dar atenção especial ao objeto-propósito da atividade, uma vez que ele orienta sua dinâmica central.

A aplicação de entrevistas exige certa flexibilidade, podendo assumir tanto a forma semi-estruturada quanto aberta. Uma possibilidade é iniciar a conversa apresentando os objetivos da pesquisa e, em seguida, solicitar que os entrevistados comentem sobre o desenvolvimento de sua atividade. Após essa introdução, eles podem ficar à vontade para relatar suas experiências em ordem temporal, trazendo percepções e reflexões de maneira espontânea. Caso, ao longo da fala, surja algum ponto que não esteja suficientemente claro, o entrevistador pode intervir com perguntas de esclarecimento, sem comprometer a fluidez do relato.

Nas entrevistas sobre os distúrbios, o entrevistador pode solicitar que o participante descreva os principais problemas enfrentados, pedindo exemplos concretos. Para aprofundar a compreensão, o pesquisador pode explorar a sequência de eventos que levaram a esses problemas, questionando como e por que ocorreram, e suas consequências.

Como mencionado, além dos dados históricos, dos distúrbios e de suas explicações, é igualmente relevante coletar informações sobre as tentativas já realizadas para resolvê-los e seus respectivos resultados, bem como sobre planos ou ideias que poderiam contribuir para sua superação. Esses dados permitem ao pesquisador avaliar o grau de expansão presente tanto na definição do problema quanto nas soluções propostas, fornecendo subsídios para o planejamento de materiais, tarefas e discussões a serem utilizadas em uma eventual necessidade de expansão.

É interessante que os dados obtidos nas entrevistas sejam registrados por meio de anotações, e gravados, uma vez que anotações isoladas podem levar à perda de informações relevantes. Além disso fazer as anotações permite apontar ideias e pensamentos que vão surgindo ao longo da entrevista e também permite uma melhorar localização dos dados durante a análise. Caso a gravação seja utilizada, o pesquisador deve solicitar o consentimento do entrevistado e explicar de forma transparente o destino e o uso dos dados.

É importante organizar os arquivos de forma a facilitar sua recuperação posterior. Uma prática recomendada é nomear cada arquivo de maneira clara, por exemplo: Entrevista_Silva_13.09.2025. Além disso, pode-se elaborar uma planilha contendo o nome dos arquivos, os principais temas abordados e observações relevantes, o que facilita futuras buscas e análises. Quando as anotações forem feitas em papel, recomenda-se digitalizá-las, realizar cópias de segurança (backup) e armazená-las em pastas organizadas por tema ou por data.

A transcrição das entrevistas é altamente recomendada para aproveitar ao máximo o material coletado. Atualmente, esse processo pode ser realizado de forma relativamente rápida com o auxílio de softwares, como o Transkriptor ou o próprio Microsoft Word, entre outros. A transcrição contribui para uma melhor visualização do conteúdo e facilita a análise subsequente.

Visitas de campo

Não há nada melhor do que as visitas de campo para o pesquisador ter uma ideia real e concreta do que é a atividade e o seu funcionamento. É recomendado que se autorizado, tome fotos e faça filmagens. Também é recomendado fazer anotações com impressões gerais. Filmagem e fotos de distúrbios são particularmente interessantes como dados espelho. Assim como as entrevistas os dados devem ser nomeados, registrados e armazenados para posterior uso.

Shadowing (sombreamento)

O shadowing outra técnica que pode usada, que consiste em acompanhar de perto um participante durante suas atividades cotidianas, como se o pesquisador fosse sua “sombra”. O objetivo é observar em tempo real como as tarefas são realizadas, quais dificuldades surgem, como as decisões são tomadas e de que maneira os trabalhadores interagem com colegas, ferramentas e regras da atividade. Esse método permite captar detalhes que dificilmente emergiriam em entrevistas, como improvisações, interrupções e desvios do planejado, oferecendo uma visão concreta dos distúrbios e do funcionamento real da atividade. Esses dados podem usados posteriormente como dados-espelho para estimular a reflexão dos participantes sobre contradições e oportunidades de transformação.

Observações participativas

A observação participante, por sua vez, envolve a inserção ativa do pesquisador no ambiente da atividade, participando no dia a dia da atividade; por exemplo ajudando nas operações. Diferente do shadowing, em que o foco é seguir um indivíduo, a observação participante busca vivenciar, experimentar a atividade. Essa abordagem possibilita identificar distúrbios recorrentes, modos de cooperação e estratégias de adaptação que os trabalhadores desenvolvem. Quando sistematizadas, essas observações fornecem subsídios valiosos para o Laboratório de Mudança, permitindo que os próprios participantes reconheçam e analisem aspectos críticos de sua prática cotidiana.

Diário de distúrbios

O diário de distúrbios é uma técnica utilizada no Laboratório de Mudança que consiste em solicitar aos participantes que registrem, diariamente, em um caderno, os distúrbios vivenciados em seu trabalho. Esses distúrbios podem ser entendidos como eventos indesejados ou negativos que dificultam a realização da atividade. No registro, o participante pode anotar o que aconteceu, quando ocorreu, de que forma e por quais motivos acredita que ocorreu.

Os dados coletados por meio desse diário podem ser empregados de duas maneiras: como material de pesquisa para compreensão da atividade e como dados-espelho, a serem apresentados e discutidos durante as sessões de análise de distúrbios.

Coleta de dados pelos participantes

Solicitar que os próprios participantes coletem, sistematizem e apresentem os dados-espelho pode ser uma alternativa bastante proveitosa. Essa experiência ocorreu em uma das primeiras intervenções de Laboratório de Mudança realizadas no Brasil, no CEREST-Piracicaba (Cerveny et al., 2020; Mendes et al., 2018). Na ocasião, os participantes foram divididos em grupos, sendo cada um responsável por coletar, organizar e apresentar os dados-espelho aos colegas. Um grupo ficou encarregado de levantar informações sobre a história, enquanto outro abordou os distúrbios.

Essa estratégia surgiu como resposta a uma limitação de recursos da pesquisa: a distância entre os pesquisadores e o local da atividade dificultava a coleta direta dos dados. No entanto, a solução mostrou-se altamente positiva, pois promoveu maior engajamento dos participantes desde o início, fazendo com que se sentissem parte integrante da intervenção e assumissem uma postura ativa ao longo do processo. Além disso, favoreceu o aprendizado sobre o conteúdo tratado e proporcionou uma compreensão mais profunda do próprio método. Ao sistematizarem os dados, os participantes se apropriaram dos modelos e conceitos do LM, o que contribuiu para a consolidação de seu uso mesmo após a intervenção. Outro benefício foi a redução de custos e de tempo de deslocamento para os pesquisadores-intervencionistas.

Naturalmente, essa estratégia também apresenta limitações. A qualidade dos dados pode não ser ideal e o aprendizado dos pesquisadores tende a ser reduzido, já que não participam diretamente da coleta. Além disso, alguns participantes podem alegar falta de tempo para se engajar nesse processo. Entretanto, entende-se que essa questão está fortemente ligada à necessidade percebida de mudança e à motivação: quando realmente interessados, os participantes encontram meios de se envolver.

Uma alternativa promissora é adotar um modelo híbrido, no qual tanto pesquisadores quanto participantes realizem a coleta de dados. Dessa forma, é possível, ao mesmo tempo, manter o engajamento e a aprendizagem dos participantes, sem perder o envolvimento direto e a experiência analítica dos pesquisadores.

Análise preliminar dos dados espelho

Para compreender a atividade em foco, é importante considerar seus componentes: os indivíduos que a compõem, as ações realizadas, seu modo de funcionamento, a estrutura do sistema de atividade, a fase de desenvolvimento em que se encontra e as possibilidades de transformação. O pesquisador não precisa dominar todos esses aspectos antes de iniciar o Laboratório de Mudança, já que grande parte desse conhecimento é construída durante as sessões, ou mesmo após elas. No entanto, quanto mais informações possuir previamente, mais preparado estará para conduzir o processo.

É útil para a compreensão das falas dos entrevistados, situar os sujeitos na estrutura organizacional da atividade, isto é, compreender o organograma, suas relações hierárquicas verticais e as horizontais. Outro aspecto relevante, é descobrir durante a coleta dos dados espelho como acontecem os fluxos de informação, ou seja, como as comunicações se fazem no dia a dia. Uma vez descobertos os canais de comunicação, seria útil o pesquisador conseguir acompanhar estas comunicações formais e informais, ao longo da pesquisa, para continuamente poder coletar dados espelho atualizados. Assim ficará mais fácil ao pesquisador compreender a diferença entre o que é o prescrito, o que se espera dos sujeitos da atividade em estudo e o que de fato se consegue fazer na realidade.

Estudos anteriores indicam que uma coleta insuficiente de dados-espelho e a falta de uma análise prévia podem comprometer o aprendizado (Silva-Macaia et al., 2019). Nessas situações, o pesquisador pode, por exemplo, deixar de perceber conflitos existentes entre os participantes. Embora, muitas vezes, os pesquisadores não disponham de tempo para uma análise sistemática aprofundada, é essencial construir, antes do início do LM, uma hipótese mínima sobre as contradições históricas do sistema, suas principais manifestações e as concepções de problema em circulação. Essa hipótese pode ser desenvolvida por meio de uma análise histórica breve, com foco nas mudanças ocorridas no objeto da atividade e na compatibilidade (ou incompatibilidade) dessas mudanças com os demais elementos do sistema.

Seleção de dados espelho

Os dados-espelho devem servir ao processo de aprendizagem e expansão. Eles podem se referir ao passado, ao presente e ao futuro.

A seguir apontaremos três exemplos de dados espelho do caso da inspeção do trabalho. O primeiro exemplo de dados espelho foi usado para comparar o presente e o passado, sendo usados trechos de entrevistas com parceiros institucionais afirmando que participaram ou já ouviram falar da existência de múltiplas ações de sucesso em Segurança e Saúde no Trabalho, no passado. Esses casos foram realizados em parceria e em colaboração interinstitucional, no dia a dia com a inspeção do trabalho (Ex.: na área do Benzeno, do Amianto, de Lesões por Esforços Repetitivos - LER/Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho - DORT, Programa de Prevenção de Riscos em Prensas e Similares - PPRPS, Vasos de Pressão, entre outros). Os entrevistados reportaram que o contato direto com os sujeitos da atividade naquela época era fácil, porém hoje ele se restringiu à formalização de denúncias por meio de sistemas informatizados, com pouca notícia de trabalhos atuais de fato colaborativos na área de SST.

O segundo exemplo de dado espelho do caso foi o uso de um modelo visual de linha histórica sobre a evolução das mudanças normativas que impactaram a atividade da inspeção do trabalho junto com um indicativo da mudança na forma da atuação segundo os entrevistados da fase etnográfica, que também foi reportada em falas dos próprios participantes do LM nas primeiras sessões. Os discursos e o modelo ajudaram os participantes a tomarem consciência sobre as transformações da atividade em SST que levaram ao seu isolamento e distanciamento dos parceiros, abrindo caminho para se interessarem em descobrir, colaborativamente, o que mudou nos mediadores do sistema, estimulando as discussões.

Um terceiro exemplo de dado espelho utilizado para design do futuro, foi a fala de um político presidente do BNDS, em um seminário público gravado disponível no Youtube[1], em que ele cita uma boa prática do banco de somente conceder empréstimos às empresas sem indícios de trabalho análogo ao escravo em toda cadeia de produção da solicitante. Os participantes do LM foram estimulados a refletir sobre o porquê não se incorporar esse tipo de prática também para a área de SST, estendendo-se um convênio que já existe entre as instituições (MTE e BNDS). A seleção destes dados espelho teve o objetivo de ajudar os participantes do LM a reconhecer a zona de desenvolvimento proximal da inspeção do trabalho, em especial na área de SST, e antever onde querem chegar e o que poderia ser feito.

Considerações finais

Este artigo teve como objetivo apresentar ideias e sugestões sobre como planejar um Laboratório de Mudança de forma efetiva, abordando a formação de grupos de planejamento e as possibilidades de coleta e seleção dos dados-espelho.

Foram propostos três níveis de planejamento: estratégico, metodológico e operacional. O planejamento estratégico, composto por pesquisadores e gestores, busca alinhar a intervenção aos objetivos e às ações de desenvolvimento da organização. O grupo metodológico, formado por pesquisadores experientes em conjunto com pesquisadores iniciantes, concentra-se na aplicação do método. Já o grupo operacional, que reúne pesquisadores e participantes, tem como foco promover o aprendizado por meio da reflexão sobre o ocorrido nas sessões, ajustando o que foi planejado no grupo metodológico à realidade da atividade.

Diversos métodos de coleta de dados podem ser utilizados, tais como entrevistas, shadowing, visitas de campo e observação participante. Além disso, outras formas de coleta de dados-espelho também são possíveis, como registros da própria oficina, análise de documentos, aplicação de questionários, uso de vídeos da internet ou até mesmo a solicitação para que os participantes coletem parte dos dados.

Concluímos que os espaços de planejamento metodológico e operacional são fundamentais não apenas para o aprendizado durante as sessões, mas também para a sua continuidade após o término delas, pois permitem ampliar a aprendizagem para além do espaço formal do Laboratório. O grupo metodológico contribui para a formação de pesquisadores novatos, enquanto o grupo operacional favorece o aprofundamento do aprendizado dos participantes, ao promover reflexões sobre sua própria experiência. Assim, recomendamos essas estratégias como formas de fortalecer a sustentabilidade do aprendizado expansivo nas intervenções do Laboratório de Mudança.

Sobre os autores

Marco Antonio Pereira Querol is an Associate Professor in the Department of Agronomic Engineering at the Federal University of Sergipe (UFS), teaching Rural Sociology, Rural Extension, and Social Movements. His research focuses on Innovation, Sustainability, Organizational Learning, Cultural-Historical Activity Theory, and Interventionist Methodologies, particularly the Change Laboratory.
E-mail: mapquero@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3815-1835. 

Doutoranda na Universidade de São Paulo (USP) e Auditora-Fiscal do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE/Brasil). Sua pesquisa concentra-se em metodologias de intervenção, processos de aprendizagem coletiva e agência e em estudos de Segurança e Saúde no Trabalho.
E-mailrenatamatsmoto@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0009-0003-6305-3425

Referências

Cerveny, G. C. de O., Coluci, M. Z. O., Mendes, R. W. B., & Vilela, R. A. de G. (2020). The Clash Between New and Old Models of Surveillance System: A Case Study of Change Laboratory in a Workers’ Health Reference Center. Em R. A. de G. Vilela, M. A. Pereira Querol, S. L. Beltran Hurtado, G. C. de O. Cerveny, & M. G. R. Lopes (Org.), Collaborative Development for the Prevention of Occupational Accidents and Diseases: Change Laboratory in Workers’ Health (p. 191–204). Springer International Publishing. https://doi.org/10.1007/978-3-030-24420-0_13

Engestrom, Y. (1987). Learning by Expanding: An Activity-Theoretical Approach to Developmental Research. (V. 1). Orienta-Konsultit.

Lippitt, R. (1949). Training in community relations; a research exploration toward new group skills (p. xiv, 286). Harpers.

Mendes, R. W. B., Vilela, R. A. G., & Cerveny, G. C. D. O. (2018). COMEÇAR EM CASA: A EXPERIÊNCIA DO LABORATÓRIO DE MUDANÇAS NA ATIVIDADE DE VIGILÂNCIA DO CEREST PIRACICABA. Revista Ação Ergonômica, 13(1), 293–297. https://doi.org/10.4322/rae.v13e201825

Querol, M. A. P. (2025). Strategies for the sustainability of expansive learning in a Change Laboratory. Bureau de Change Laboratory, 2, 4–4. https://doi.org/10.82215/mw99x032

Querol, M. A. P., Jackson Filho, J. M., & Cassandre, M. P. (2011). Change laboratory: Uma proposta metodológica para pesquisa e desenvolvimento da aprendizagem organizacional. Administração: ensino e pesquisa, 12(4), 609–640.

Sannino, A. (2015). The principle of double stimulation: A path to volitional action. Learning, culture and social interaction, 6, 1–15.

Silva-Macaia, A. A., Querol, M. A. P., Fischer, F. M., & Vilela, R. A. de G. (2019). Conflict in a Formative Intervention at a Public School: Lessons for Researcher-Interventionists. Em Collaborative Development for the Prevention of Occupational Accidents and Diseases: Change Laboratory in Workers’ Health (p. 83–97). Springer.

Virkkunen, J., & Newnham, D. (2013). The change laboratory: A tool for collaborative development of work and education. Springer Science & Business Media.

Virkkunen, J., & Newnham, D. S. (2015). O Laboratório de Mudança: Uma ferramenta de desenvolvimento colaborativo para o trabalho e a educação. Belo Horizonte: Fabrefactum, 424, 2015.

 



[1] Este dado espelho do seminário foi localizado da seguinte forma. Como a Atividade em Estudo é a Inspeção do Trabalho, a pesquisadora se inscreveu no início da pesquisa, na fase etnográfica, no canal do Youtube do Ministério do Trabalho, assim como no das instituições parceiras (como o BNDS), para receber os informes, as comunicações. O Seminário foi divulgado à época e chamou sua atenção sendo selecionado, porque contou com a participação do Ministro do Trabalho, cargo hierárquico superior principal da estrutura organizacional do MTE, onde a atividade da Inspeção do Trabalho se insere. Foi selecionado trecho da gravação que anuncia prática inovadora do BNDS, pois caso fosse adotada também em SST, poderia possibilitar expansão do objeto. Essa prática inovadora foi fruto de uma parceria do BNDS com o MTE que está alinhada com o objeto da inspeção do trabalho na área de legislação social. Nota-se que o rastreamento das comunicações relacionadas à atividade, à medida que são publicadas, permitiu apresentar aos participantes dado espelho atual que provocou interesse, e estimulou o grupo a querer desenhar soluções para desenvolver a atividade na área de SST. Link para o Seminário: Desenvolvimento e Mundo do Trabalho


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

1. O que é o Laboratório de Mudança: Diferenças e sua base filosófica.

2. Base Teórica do LM (Parte I) : Sistema de atividade

10. O que se pode alcançar e aprender em e com um LM?