6. Negociacão e Planejamento Estratégico de um LM

Negociação e Planejamento Estratégico de uma intervenção de Laboratório de Mudança

Marco Antonio Pereira Querol1 e Rodolfo Andrade de Gouveia Vilela2

1 Universidade Federal de Sergipe

mapquero@mail.com

2Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo

ravilela@usp.br

1.  

Vídeo Rodolfo Vilela
Vídeo Marco Querol 


Resumo

Este artigo discute o planejamento e a negociação de intervenções com a metodologia do Laboratório de Mudança (LM), destacando sua aplicação em contextos organizacionais diversos. O LM, fundamentado na Teoria da Atividade Histórico-Cultural e na aprendizagem expansiva, requer um processo cuidadoso de alinhamento estratégico, metodológico e operacional. A negociação com gestores e tomadores de decisão é apresentada como um processo contínuo de aprendizagem compartilhada, essencial para garantir adesão, apoio institucional e sustentabilidade das mudanças propostas. O texto enfatiza a importância da construção social da demanda, na qual pesquisadores, gestores e trabalhadores identificam coletivamente problemas e possibilidades de desenvolvimento. São exploradas estratégias de negociação em diferentes contextos organizacionais, desde estruturas hierárquicas rígidas até ambientes mais horizontais, evidenciando os desafios de engajamento e a necessidade de adaptação metodológica. Conclui-se que o êxito de um LM depende da confiança mútua, da comunicação constante e do protagonismo dos participantes, garantindo transformações duradouras e significativas.

Palavras chaves: Negociação, Planejamento, Laboratório de Mudança, Intervenções Formativas, Teoria da Atividade Histórico-Cultural, Aprendizagem Expansiva.

 1.     Introdução

Este artigo tem como objetivo discutir algumas perguntas centrais: como planejar um Laboratório de Mudança (LM)? E Como negociar uma intervenção com os tomadores de decisão? Esse tema já foi abordado em outras publicações (Cassandre et al., 2018; Virkkunen & Newnham, 2013), mas, aqui, pretendemos tratá-lo de forma mais prática e detalhada. Com base na nossa experiência e de nossos grupos de pesquisa PesquisAT e ITAPAR (Vilela et al., 2019). No artigo apresentaremos fatores que podem influenciar a negociação e estratégias que podem facilitar esse processo.

O planejamento de uma intervenção de LM pode ocorrer em três níveis (Figura 1): planejamento estratégico, metodológico e o operacional (Querol, 2025). O planejamento estratégico consiste em alinhar a intervenção com outras ações de desenvolvimento e com os objetivos da organização em que a atividade está inserida. No nível estratégico é essencial que a equipe de intervenção tenha uma boa representação prévia a respeito da natureza dos problemas que potencialmente perturbam ou incomodem a organização. Como estes problemas são percebidos e vivenciados nos diferentes níveis da organização? Estão claros? Que iniciativas e metodologias de intervenção já foram tentadas com sucesso ou insucesso?

Figura 1: Representação dos três níveis de planejamento e sua relação com a equipe de intervencionistas e o LM.

A ergonomia da atividade denomina este processo iniciado na negociação como a construção social da demanda (Guérin et al., 2001). A construção da demanda pode ser entendida como um processo dinâmico e socialmente construído, onde a equipe de  pesquisadores/ intervencionistas propiciam espaço de aprendizagem inicialmente com a alta direção, processo este que é aprofundado nas sessões iniciais do LM, de modo que os atores identifiquem problemas reais e potenciais no trabalho, muitas vezes a partir de demandas sociais latentes ou explícitas, como reclamações de trabalhadores, necessidade de mudanças tecnológicas, ou requisições de órgãos fiscalizadores.

Essa construção envolve o engajamento da alta direção, a gestão intermediária e os trabalhadores através de métodos interacionais e observacionais ancorados pela ferramenta da dupla estimulação, permitindo que a demanda seja reconstruída pelos atores a partir da atividade real e não apenas do trabalho prescrito. A fase inicial da negociação, que deve envolver os tomadores de decisão estratégicos da organização, como políticos, CEOs, diretores e gestores, resultará na formulação de um termo de compromisso de intervenção em nível estratégico institucional. Esse tipo de planejamento faz parte do que chamaremos de negociação (Querol, 2025).

O planejamento metodológico consiste em organizar questões relacionadas ao método, tais como: quais dados-espelho coletar, quais modelos e conceitos utilizar como segundo estímulo, formulação de hipóteses sobre contradições e identificação de possibilidades de desenvolvimento, além de quais ações de aprendizagem promover durante a negociação inicial e as sessões de aprendizagem expansiva. Esse planejamento ocorre entre pesquisadores e às vezes é chamado de grupo de especialistas (Querol, 2025).

O grupo de planejamento operacional tem a função de organizar o passo a passo das sessões, tratando de questões mais práticas, como quem convidar, como engajar os participantes e como adaptar o método e os estímulos à cultura da atividade. É um espaço que geralmente envolve de três a cinco participantes das sessões, mas, nas experiências mais recentes do grupo, optamos por deixá-lo aberto para aqueles que desejassem se envolver. Em geral, participam os mais proativos e engajados. Esse espaço também pode ser utilizado pelos participantes para esclarecer conceitos e ideias, assim como para desenvolver propostas que surjam ao longo das sessões. Nesta postagem focaremos principalmente no processo do planejamento estratégico e negociação (Querol, 2025).

A forma como a demanda por uma intervenção surge é um aspecto que afeta a negociação. Uma possibilidade é que ela parta de dentro da própria organização, interessada em implementar um LM. Essa é a situação ideal, pois indica que já existe certo reconhecimento do problema e familiaridade com o método. Nesses casos, o processo de negociação costuma ser mais simples, com maior aceitação e apoio institucional. Outra possibilidade, também bastante interessante é que pesquisador seja um insider na atividade, ou tenha contatos internos prévios com algum nível de confiança. Isso também facilita a aceitação, condução e continuidade do processo de aprendizado de uma intervenção.

Algumas intervenções de LM ocorrem em atividades em que o pesquisador já tem acesso e contato com a gerência. Isso explica por que tantos LMs acontecem nas áreas de educação e saúde, onde os pesquisadores possuem maior conhecimento do contexto e maior facilidade de acesso.

Frequentemente, a demanda surge de forma externa, seja por iniciativa de pesquisadores ou de agentes públicos ou órgãos de regulação ou auditoria que incentivam práticas de desenvolvimento e inovação. Nesses casos, o desafio inicial é sensibilizar os gestores e tomadores de decisões estratégicas da organização a participarem da intervenção, envolvendo uma negociação sobre a importância dela, apresentação do método e construir, gradualmente, uma demanda compartilhada. Esse processo tende a exigir mais tempo, diálogo e esforço de convencimento, para que o LM seja percebido não como uma imposição externa, mas como uma oportunidade de transformação.

A seguir, discutimos como a hierarquia de uma organização e a composição de um LM afetam a negociação. Em seguida entrarem em maior detalhe de como conduzir os primeiros contatos, quais informações coletar e apresentar o método. Finalmente discutiremos o conteúdo do planejamento estratégico e o plano da intervenção.

2. Negociação versus hierarquia.

A estrutura hierárquica da organização e a composição de atividades que irão formar o LM afeta a negociação. A negociação pode ser entendida como um processo contínuo de aprendizagem entre o intervencionista e os tomadores de decisão estratégica, com o objetivo de apoiar a intervenção do Laboratório de Mudança. A negociação deve ocorrer não somente no início visando a aceitação do LM, mas sim durante todo o processo, do planejamento, execução e a implementação, avaliação, consolidação e disseminação das soluções geradas ao longo da intervenção. Caso os tomadores de decisão não participem diretamente das sessões, os mesmos devem ser comunicados ativamente sobre o que ocorre durante as sessões, visando evitar brechas de aprendizado entre os participantes e os mesmos.

Portanto, para que uma intervenção com LM seja bem-sucedida, é fundamental que haja um processo contínuo de aprendizagem compartilhada, comunicação ativa e tomada de decisão envolvendo os atores-chave durante toda a intervenção, ou seja, haja negociação.

A negociação geralmente envolve, pelo menos inicialmente, a equipe de pesquisa e os tomadores de decisão. No entanto, sempre que possível, também pode incluir atores intermediários que ofereçam suporte — por exemplo, um agente interno da organização que apoie a ideia da intervenção e mantenha contato e confiança com os tomadores de decisão, e se possível representantes dos trabalhadores.

Quem são os tomadores de decisão estratégica dentro de uma atividade depende se se trata- se de uma atividade ou uma rede, o grau de centralização na tomada de decisões, a divisão de tarefas, a hierarquia entre os participantes e a distribuição do poder de ação. Decisões estratégicas referem-se, por exemplo, à alocação de recursos financeiros e humanos dentro da organização, ou seja, decisões relacionadas à distribuição de pessoas e dinheiro. Raramente uma organização é completamente centralizada e hierárquica ou totalmente descentralizada e horizontal — o mais comum é encontrar gradientes na distribuição do poder decisório.

Por exemplo, organizações como a polícia militar, escolas, instituições governamentais e hospitais tendem a ter estruturas mais centralizadas e hierárquicas. Nesses casos, os tomadores de decisão estratégica são frequentemente pessoas em posições de liderança, como diretores, gerentes ou CEOs. Dependendo do contexto, os tomadores de decisão também podem ser políticos ou até os próprios trabalhadores. Por outro lado, em contextos de organizações menos hierárquicas — como agricultura familiar, ONGs, empresas de tecnologia ou o mercado financeiro — as decisões frequentemente precisam ser tomadas de forma rápida e descentralizada, envolvendo equipes autônomas ou uma liderança mais distribuída.

2.     Negociação versus composição de atividades

A forma como a negociação em um LM é conduzida está intimamente ligada à composição das atividades que integram a intervenção e ao grau de poder de decisão dos participantes envolvidos. Reconhecer essas diferentes configurações organizacionais é essencial para que o intervencionista possa adaptar suas estratégias de negociação, buscando envolver os tomadores de decisão de maneira compatível com a cultura e a estrutura da atividade em questão.

A negociação, entendida como a aprendizagem entre o pesquisador e os tomadores de decisão estratégica, pode ocorrer em diferentes formatos de LM. Um dos tipos mais simples de layout ocorre em LM compostos por sistemas de atividade interdependentes, nos quais os participantes possuem alta autonomia na tomada de decisões. Um exemplo clássico é de LM com agricultores que se reúnem para discutir um problema comum que exige ação coletiva para ser resolvido — como o controle de uma praga que não pode ser combatida individualmente (Vänninen et al., 2015, 2021). Esse tipo de intervenção envolve gestores locais com autonomia decisória, em que os participantes são, ao mesmo tempo, os tomadores de decisão estratégica. Nesse caso, a comunicação tende a ser mais simples e direta, pois o participante e o tomador de decisão são a mesma pessoa.

Em LM desse tipo, geralmente há uma interação individualizada inicial para aceitar a participação no LM, seguida de interações pontuais, caso algum participante se retire ou deixe de participar do processo. A maior parte da aprendizagem ocorre durante as sessões abertas e nas interações com os outros participantes, em vez de individualmente com o pesquisador interventor.

Outra forma de formato de LM é quando os tomadores de decisão estratégica participam juntamente com os trabalhadores nas sessões. Esse tipo de LM geralmente acontece em organizações ou unidades locais com baixa hierarquia, onde os trabalhadores podem se expressar sem medo de repressão ou retaliação. Esse é o caso típico dos LMs realizados em atividades do setor de tecnologia de comunicação ou em países nórdicos, onde há menor rigidez hierárquica e maior abertura ao diálogo entre diferentes níveis da organização. Nesses contextos, a negociação, ou seja, o aprendizado individualizado entre pesquisadores e tomadores de decisões ocorre principalmente no início da intervenção, com o objetivo de obter a aceitação da gestão. Uma vez iniciado, não há necessidade de manter um espaço exclusivo para a negociação, já que os gestores participam ativamente das sessões e acompanham diretamente o desenvolvimento do processo (Figura 2).

Figura 2: Representação dos dois momentos em um LM onde os participantes executores e tomadores de decisões estratégicas participam juntos na mesma sessão.

 

Durante a aplicação dos Laboratórios de Mudança no Brasil, observamos um contexto distinto, caracterizado por uma hierarquia mais rígida e, frequentemente, por situações de conflito entre a gestão e os trabalhadores. Nesses ambientes, a liberdade de expressão dos participantes tende a ser limitada, o que pode comprometer o processo de aprendizagem coletiva. Diante desse cenário, recomenda-se a criação de espaços de aprendizagem separados entre os tomadores de decisão estratégica (por exemplo, gestores) e os trabalhadores da linha de frente. O objetivo é oferecer um ambiente no qual estes últimos possam se expressar de forma mais aberta e segura.
Nesse caso, a negociação tende a ser mais prolongada, estendendo-se ao longo de toda a intervenção, sendo mediada pelo pesquisador intervencionista até que ele ou ela avalie que o nível de compreensão alcançado é suficiente para possibilitar uma aprendizagem mútua direta — o que pode ocorrer durante ou ao final da intervenção (Figura 3).

Figura 3: Formato de LM com sessões paralelas à negociação (Querol, 2025).

O modelo da Figura 2, onde se tem a negociação em reuniões paralelas as sessões do LM são características de LMs em organizações com forte hierarquia e cultura forte de divisão do trabalho de desenvolvimento e inovação entre trabalhadores e gerência. Esse é o modelo mais comum nos quais temos experiência.

3.     Reconhecer a necessidade de uma intervenção formativa

Como mencionado acima, a negociação pode variar dependendo de vários aspectos, como a composição, cultura hierárquica, o nível de conhecimento dos tomadores de decisões sobre o método e sobre o problema, e a existência e intensidade da relação previa entre o pesquisador intervencionista e os tomadores de decisões.

A seguir apresento uma possível sequência de ações de negociações para o tipo de caso que talvez seja o mais típico e desafiador, que é o caso quando o pesquisador não tem contato prévio com uma organização, não tem conhecimento prévio sobre as ações estratégicas, os tomadores de decisões não conheçam de antemão o método, e os problemas estejam agravados com risco de resistência a mudança. Se esse não é o seu caso, provavelmente várias recomendações não sejam relevantes; repetindo que cada caso é um caso.

O primeiro passo obviamente é estabelecer um contato com os tomadores de decisões. Quem são estes tomadores de decisões a serem contactados? Isso depende de cada caso, podendo ser gestores locais (gerência), centrais (diretoria de uma instituição) ou em alguns casos responsáveis por formulações de políticas públicas. Para simplificar aqui chamaremos daqui em diante os tomadores de decisões apenas de gestores. Quem contactar vai depender do problema que visa ser resolvido, o nível de apoio necessário para resolvê-lo, os contatos e acesso que o pesquisador tem.

Em geral, quanto maior o nível de gestão que o pesquisador conseguir alcançar, maior poderá ser o apoio ao aprendizado, maior a continuidade e expansão do mesmo. Porém isso não significa, que caso o pesquisador não tenha, ou não consiga um contato com a alta gestão, ele não possa ou não deva conduzir uma intervenção. Caso o pesquisador não consiga inicialmente o contato com a alta gestão, poderá começar com a gestão local, e tentar ir envolvendo atores de níveis superiores durante o processo. O apoio também pode ser conseguido durante as sessões.  A situação deve ser avaliada pelo pesquisador e adaptada a cada situação. Aqui propomos apenas alguns dos possíveis cenários, e algumas possíveis estratégias em vez de uma regra a ser seguida.

3.1 Reconhecimento da necessidade de mudança  

A primeira fase é alcançar o reconhecimento da necessidade de mudança por parte dos gestores. Ao conseguir contato com os gestores, começa o processo de aprendizado mútuo com os pesquisadores intervencionistas. Para o intervencionista é uma situação contraditória, pois para realizar uma boa negociação ele precisa de informações estratégicas, porém para obter tais informações ele precisa primeiro que a gestão confie, aprenda e abra as portas para o intervencionista.

A negociação geralmente começa com uma reunião de apresentação. A negociação pode seguir duas direções: um foco nos problemas ou no potencial de desenvolvimento. No caso de o pesquisador decidir focar no problema, o primeiro passo é explorar a concepção que os gestores têm em relação aos distúrbios (eventos indesejados), e em qual atividade esses problemas se situam. Dependendo do contexto pode ser que os gestores reconheçam que existam problemas e que os mesmos precisam ser resolvidos.

Pode ser também que por um motivo ou outro haja uma negação e mascaramento dos problemas. Por exemplo, os gestores podem negar haver acidentes de trabalho por visualizar riscos de ações judiciais para a empresa.  Outro exemplo, é um caso em que há um risco de punição legal, social ou psicológica por reconhecer práticas indesejadas. Pode ser também que a gestão não tomou conhecimento sobre o problema, ou simplesmente porque o problema visualizado pelo pesquisador não seja considerado um problema pelo gestor.  Portanto, novamente depende do contexto.

Para avançar da negação para o reconhecimento da necessidade de mudança uma confrontação com dados espelho é necessária, porém pode ser arriscada em casos de problema demasiado agravado. Caso o pesquisador tenha conhecimento sobre o problema e tenha alguns dados sobre o mesmo (ex: uma reportagem, imagens, falas, etc...), uma alternativa seria confrontar os gestores apresentando dados espelho que mostrem o problema. Essa é uma possibilidade que pode ser considerada e deve ser feita se possível. Porém dependendo do nível de agravamento da crise. Se a crise estiver demasiada agravada pode ser que tais dados possam gerar resistência. Se esse for o caso, o pesquisador pode usar algumas estratégias.

A primeira estratégia é usar dados espelho neutros, que podem ser de outra organização, setor, ou de outra região que enfrenta problemas similares, com os quais os gestores possam se identificar.

Outra possibilidade é explorar o potencial de desenvolvimento. Para tanto, o pesquisador pode explorar a missão da organização e os resultados esperados na atividade, e se os mesmos estão sendo alcançados em seu potencial máximo, ou se poderiam ser melhorados ainda mais. Provavelmente a gestão deve reconhecer que algum tipo de melhoria é possível, e esforços de mudanças são necessários. Nesse caso, o foco inicial não são os problemas, mas a possibilidade de melhoria e desenvolvimento. Outra estratégia possível é explorar os métodos de solução de problemas adotados pela organização, questionando se alcançam ou não os resultados esperados. É muito comum nas organizações a contratação de acessórias externas que implantam de fora para dentro soluções prontas que não necessariamente atendem às necessidades e ao contexto da cultura interna. O modelo típico é o que constatado a existência dos problemas, aplica-se uma ou mais soluções prontas, sem, no entanto, analisar em profundidade as causas sistêmicas destes problemas, e pior sem construir internamente o aprendizado sistêmico e o protagonismo necessário para o diagnóstico causal, a construção coletiva das inovações, comprometendo eventualmente a sustentabilidade das soluções.

Cria-se um atalho, como representado pela passagem direta do quadrante 1 ao quadrante 4, conforme a Quadro 1.

Quadro 1: Opções de mudança em uma situação problemática. (Vilela et al., 2021). Fonte: Adaptado de Virkkunen e Newnham (2014. p. 54).

Foco

Problema

Soluções

Estrutura sistêmica invisível da atividade coletiva.

2. Revelando as causas sistêmicas dos problemas visíveis na atividade.

3. Encontrando um caminho para superar os problemas mediante a reconceituação expansiva da ideia da atividade.

Eventos e problemas imediatamente visíveis nas ações de indivíduos no âmbito da atividade.

1. Identificando os pro- blemas óbvios (visíveis).

4. Implementando mudanças (novos instrumentos, regras, modos de dividir o trabalho, novas relações com clientes etc.).

 









A Quadro 1 representa o percurso da solução técnica típica das intervenções de engenharia e consultoria, que não levam em conta a interação sistêmica das origens profundas e históricas dos problemas. Essa abordagem desconsidera os aspectos humanos, políticos, econômicos e sociais que ultrapassam em muito a dimensão técnica. As soluções decorrentes dessa abordagem podem ser pouco duradouras deixando intocados os fatores organizacionais, as contradições que continuarão afetando o sistema. Já a abordagem sóciotécnica sistêmica típica do aprendizado expansivo proposto pelo LM, pode ser representada pelo percurso 1-2-3-4. Ela expande a compreensão e a intervenção sobre estas determinantes (as causas das causas), habitualmente as dimensões invisíveis e pouco óbvias sobre os problemas (Vilela et al., 2021).

Nesta fase, pode se utilizar por exemplo o modelo da Zona de Desenvolvimento Proximal, que representa as possibilidades de desenvolvimento da atividade sob possível intervenção, e perguntar onde ela se encontra e onde gostaria que estivesse em breve. Como o pesquisador ainda não tem conhecimento específico pois ainda não coletou dados espelho, pode usar um modelo de ZPD geral, com dimensões temporal, espacial, social e ética. A missão da empresa, caso exista de forma explicita, pode ajudar a identificar as dimensões mais importantes e na formulação de uma ZPD mais adaptada as alternativas estratégicas da organização. 

O resultado desejado dessa primeira fase da negociação é um reconhecimento por parte dos gestores da necessidade de mudança. Essa necessidade pode ser tanto em termos de resolver resultados não desejados, como promover melhorias e melhorar de resultados. Para consolidar os resultados da fase vale questionar a gestão de forma explicita se: é necessário mudar? querem mudar? Se sim. Avançamos.

3.2 Apresentar e encaixar o LM nos planos de desenvolvimento estratégico da organização

Uma vez reconhecido que existe necessidade de mudança, e interesse em mudar, , a fase seguinte é explorar abrir espaço e apresentar o LM. Para abrir espaço, algumas perguntas a serem feitas são:  O que a organização vem fazendo para chegar lá? Essas formas são suficientes?  O pesquisador pode questionar o que a organização vem fazendo e se isso é suficiente para alcançar os resultados esperados. Caso haja um reconhecimento de que novas ações e iniciativas são necessárias, o pesquisador pode trazer um ou mais exemplos de intervenções de LM em atividades similares ou com problemas similares, ressaltando o processo e os resultados alcançadas. Pode trazer impresso algumas imagens, ou slides com um breve resumo apresentando o que é um LM, como funcionada, ações conduzidas, potenciais resultados possíveis

Pode-se perguntar aos gestores, se ele teria interesse de participar e quais resultados eles esperariam de tal intervenção; e, se e como o LM poderia se encaixar nas ações estratégicas de desenvolvimento da organização.

4.     Iniciando o planejamento estratégico com a gestão

Uma vez manifestado o interesse em realizar um Laboratório de Mudança pode começar com o planejamento da intervenção. Para tanto pode-se usar como meio e fim a elaboração de um plano, que servirá como forma de sistematizar e facilitar o aprendizado entre os pesquisadores e os gestores. Aqui replico e uso como base as ideias propostas por Virkkunen e Newnham (2015).

4.1 Delineando o sistema de atividade a ser desenvolvido  

Como já foi mencionado anteriormente, um LM tem como unidade de análise um ou mais sistemas de atividade. Para tanto, durante o diálogo com a gestão é necessário definir qual é a atividade que se pretende desenvolver. A realização de um diálogo sobre os problemas pode indicar a atividade em que eles ocorrem com maior intensidade. Lembro aqui que o que determina uma atividade é seu objeto. Portanto, se houver dificuldade de determinar a atividade, uma dica é identificar o objeto.

A necessidade de transformar a atividade e de realizar uma intervenção por meio do Laboratório de Mudança pode ser identificada a partir de discussões sobre as principais mudanças já ocorridas, em curso ou ainda necessárias na atividade em questão. Esse mapeamento envolve também a análise da visão da gerência acerca da situação e de seus objetivos estratégicos, bem como das dificuldades enfrentadas, da insatisfação de clientes e da ausência de resultados satisfatórios. Além disso, considera-se o exame das iniciativas e ideias em andamento, dos debates existentes sobre o desenvolvimento da atividade e das unidades em que as transformações e os novos desafios se apresentam de forma mais intensa 8Virkkunen e Newnham, 2015).

4.2 Esclarecimento das pré-condições de um LM

É fundamental esclarecer as condições necessárias para sua aplicação. O LM caracteriza-se como uma intervenção formativa: seus resultados não são previamente conhecidos, pois tanto os problemas quanto as soluções são construídos de forma colaborativa com os participantes.

É essencial garantir uma comunicação constante entre os pesquisadores e a gestão, de modo a compartilhar o andamento do processo e os aprendizados gerados. Dependendo da natureza do problema, pode ser necessário realizar inicialmente algumas reuniões sem a presença da gestão, até que os participantes alcancem um nível mínimo de aprendizado e confiança para um diálogo mais amplo.

Outro aspecto crucial é a disponibilização de tempo para participação dos trabalhadores. Para tanto, os mesmos precisam ser liberados para participar das sessões durante o horário de trabalho. Além disso, a gestão deve demonstrar apoio não apenas ao final do processo, mas também de forma ativa ao longo de sua realização, eventualmente participando de algumas sessões.

O processo de aprendizagem requer ainda um espaço seguro, no qual os participantes se sintam à vontade e confiantes para se expressar. Para isso, é importante estabelecer um acordo de respeito mútuo e garantir que o conteúdo das discussões não será utilizado contra os envolvidos. Normalmente, as sessões são gravadas para fins de análise, mas os pesquisadores assumem o compromisso de preservar a confidencialidade e a privacidade de todos. Este direito à livre manifestação deve obrigatoriamente estar assegurado no documento formal / termo de compromisso assinado entre os gestores e os pesquisadores.

4.3 A organização das sessões

Uma vez definida a atividade e esclarecido os princípios é hora de começar a desenhar em mais detalhe onde, quem em que frequência se reunirão.

Um LM geralmente é conduzido em uma unidade piloto onde o problema esteja agravado ou onde atividade esteja mais avançada. É importante também que a unidade piloto mostre interesse em participar. Também deve-se avaliar qual delas ocupa uma posição central para a futura expansão e consolidação de um novo modelo da atividade. Por fim, é preciso examinar em qual unidade a situação se apresenta suficientemente estável para que o processo do Laboratório de Mudança possa ser conduzido com êxito.

Detalhes em relação a quem serão os participantes e a frequência das sessões podem ser definidos antecipadamente no plano, porém é interessante também deixar aberta a possibilidade de convidar pessoas novas e adicionar novas sessões durante o processo.

É importante destacar que o critério de seleção dos participantes não deve ser a representatividade política, mas sim a capacidade de contribuir de forma prática para a análise, o desenho e a implementação de soluções aos problemas enfrentados. A participação deve ser voluntária e, preferencialmente, incluir membros de diferentes funções dentro da atividade, desde que compartilhem o mesmo objeto de trabalho. O convite, idealmente, deve ser aberto. Quanto ao número de participantes, um grupo entre 15 e 20 pessoas é considerado adequado para favorecer discussões intensas e abertas. Caso o número seja maior, recomenda-se a subdivisão em grupos menores.

A definição da frequência das sessões precisa ser acordada antes do início do processo. Em geral, um LM é composto por 5 a 12 encontros. No entanto, conciliar agendas costuma ser um desafio, já que cada vez mais os trabalhadores têm dificuldade de reservar tempo para refletir e desenvolver sua própria atividade. Frequentemente surge a tendência de reduzir o número de sessões ou de ampliar os intervalos entre elas. A experiência mostra, porém, que um número muito reduzido de encontros não é suficiente para realizar uma análise aprofundada e percorrer todo o ciclo da aprendizagem expansiva. Da mesma forma, intervalos superiores a uma semana entre as sessões tendem a “esfriar” o debate, comprometendo a continuidade do processo de aprendizagem.

4.6 O processo de comunicação e avaliação

O sucesso e a sustentabilidade do aprendizado gerado em um Laboratório de Mudança dependem, em grande medida, do apoio dos tomadores de decisão estratégica, responsáveis pelo controle de recursos financeiros e humanos. Para que isso ocorra, é essencial estabelecer uma comunicação contínua, de modo que também esses gestores possam aprender ao longo do processo. Em outras palavras, o processo de negociação, entendi como o aprendizado expansivo que ocorre de forma individualizada, ou isolada, entre pesquisadores e gestores deve ser contínuo durante todo o processo.

Esse aprendizado pode se dar em diferentes espaços: diretamente nas sessões do LM, caso os gestores participem junto com os demais participantes, nesse caso já não é denominado negociação; em encontros paralelos, ou seja, sessões separadas somente com gestores; em reuniões individuais entre pesquisador - gestores; ou ainda por meio de comunicados (ex: atas e relatórios). Uma alternativa é a criação de um comitê de pilotagem ou de planejamento com a participação dos gestores, e que permita a eles acompanharem e influenciar o processo de forma estruturada. O fundamental, como já mencionado, é que a aprendizagem expansiva também envolva os gestores, pois, sem isso, as inovações propostas pelos participantes tendem a enfrentar barreiras para serem implementadas, consolidadas e difundidas.

Por essa razão, é recomendável que, já na fase inicial de negociação, sejam definidas estratégias de comunicação com a gestão e que essas sejam incorporadas ao plano do LM. Além disso, pode ser previsto que, ao término do processo, a própria organização promova uma avaliação conjunta, com o objetivo de analisar as inovações desenvolvidas e planejar os meios de apoiá-las e disseminá-las.

Abaixo apresento o conteúdo de um plano de um LM de acordo com Virkkunen e Newnham (Virkkunen & Newnham, 2013).

Esquema do Projeto de um Laboratório de Mudança

Justificativa da intervenção
  • Necessidade de preparar a intervenção
  • Impulso ou motivação para realizá-la
Objeto da atividade
  • Atividade a ser desenvolvida
  • Problemas e desafios centrais
  • Manifestações da necessidade de transformação
Atores envolvidos
  • Participantes do LM
  • Pesquisadores-interventores
  • Especialistas e contatos da organização-cliente
Coordenação e integração
  • Direcionamento do projeto
  • Articulação com outras atividades de desenvolvimento
Estrutura do processo
  • Sequência das sessões do LM
  • Participantes em cada sessão
  • Estratégias de coleta de dados
  • Preparação do processo
Recursos e custos
  • Estimativa de horas de trabalho
  • Recursos necessários de pesquisadores, participantes e parceiros

Considerações finais

Esta postagem teve como objetivo apresentar os principais elementos da negociação e do planejamento estratégico junto a tomadores de decisão de uma intervenção de Laboratório de Mudança. Discutimos fatores que influenciam diretamente esse processo, como a composição das atividades, a participação ou não dos gestores nas reuniões, o contato prévio entre pesquisadores e dirigentes, bem como aspectos da cultura organizacional e do nível hierárquico existente. Cabe ao pesquisador intervencionista estar atento a esses elementos, pois deles dependem as condições para o início e a sustentabilidade da intervenção.

Destacamos ainda que os contextos em que não há contato prévio com a organização, ou em que os gestores desconhecem o método do LM, apresentam os maiores desafios. Nesses casos, estratégias de diálogo e de aprendizagem tornam-se essenciais para que os gestores compreendam tanto a necessidade de transformação da atividade quanto o potencial do LM em apoiar esse processo.

Por fim, ressaltamos que o aprendizado dos gestores deve ser contínuo, condição indispensável para o êxito da intervenção e para a consolidação de um processo de aprendizagem expansiva sustentável. Esse aprendizado pode ocorrer durante as sessões, em espaços específicos de interação ou em diálogos individualizados com o pesquisador, processo que chamamos de negociação. Por isso, é recomendável que, desde o início, sejam esclarecidos os princípios do LM, as condições necessárias ao seu sucesso e as formas de acompanhamento ao longo de todo o percurso. Somente assim será possível criar as bases de confiança, corresponsabilidade e engajamento que permitem não apenas a implementação de mudanças duráveis e transformadoras.


 

Sobre os autores

Marco Antonio Pereira Querol é Professor Associado no Departamento de Engenharia Agronômica da Universidade Federal de Sergipe (UFS), ministrando as disciplinas de Sociologia Rural, Extensão Rural e Movimentos Sociais. Sua pesquisa concentra-se em Inovação, Sustentabilidade, Aprendizagem Organizacional, Teoria da Atividade Histórico-Cultural e Metodologias Intervencionistas, em especial o Laboratório de Mudança.

E-mail: mapquero@gmail.com

ORCID: 0000-0003-3815-1835.

Professor Sênior da Faculdade de Saúde Pública da USP, Departamento de Saúde ambiental. Pesquisador na área de saúde e segurança do trabalhador, riscos tecnológicos, Vigilância, análise e prevenção de acidentes. Foi engenheiro e coordenador do CEREST Piracicaba, coordenou 2 projetos temáticos de pesquisa apoiados pela FAPESP usando a metodologia do LM ajustado às condições socioculturais em várias atividades produtivas.

Email: ravilela@usp.br

ORCID : https://orcid.org/0000-0002-8556-2189

 

Referências

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Guérin, F., Kerguelen, A., & Laville, A. (2001). Compreender o trabalho para transformá-lo: A prática da ergonomia. Editora Blucher.

Querol, M. A. P. (2025). Strategies for the sustainability of expansive learning in a Change Laboratory. Bureau de Change Laboratory, 2, 4–4. https://doi.org/10.82215/mw99x032

Vänninen, I., Pereira-Querol, M., & Engeström, Y. (2015). Generating transformative agency among horticultural producers: An activity-theoretical approach to transforming Integrated Pest Management. Agricultural Systems, 139, 38–49.

Vänninen, I., Querol, M. P., & Engeström, Y. (2021). Double stimulation for collaborative transformation of agricultural systems: The role of models for building agency. Learning, Culture and Social Interaction, 30, 100541.

Vilela, R. A. G., Almeida, I., & Faria, M. P. (2021). Razões para a persistência da insegurança no trabalho. Braatz, D.; Rocha, R.; Gemma, S. (org.). Engenharia do trabalho: Saúde, segurança, ergonomia e projeto. Ex Libris.

Vilela, R. A. G., Querol, M. A. P., Hurtado, S. L. B., Cerveny, G. C. de O., & Lopes, M. G. R. (2019). Collaborative Development for the Prevention of Occupational Accidents and Diseases: Change Laboratory in Workers’ Health. Springer Nature.

Virkkunen, J., & Newnham, D. (2013). The change laboratory: A tool for collaborative development of work and education. Springer Science & Business Media.

 


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