Decisões em Grupo e Mudança Social

 Kurt Lewin: Group Decision and Social Change 

por Marco A Pereira Querol 

Este texto visa apresentar e discutir as contribuições teóricas de Kurt Lewin para compreensão do processo coletivo de tomada de decisões, tal como expostas em seu artigo Group Decision and Social Change. Tal iniciativa pretende ser um alimento para discussão futura de como facilitar o processo de tomada de decisão em intervenções formativas para fins de mudanças sociais. 

Link de acesso ao artigo:

Lewin_Group_Decision_&_Social_Change_Readings_Psych_pp197-211.pdf 

1. A Fenomenologia 

Apesar de não explicitar diretamente, Lewin aponta uma fase que provavelmente antecede a intervenção propriamente dita. Essa fase podem ser compreendidas como equivalentes à fase de etnografia de coleta de dados, espelho e formulação de hipóteses preliminares no Laboratório de Mudanças (Engeström et al., 1996), ou à fase fenomenológica na metodologia de pesquisa de desenvolvimento do trabalho (Engeström, 1987). No artigo de Lewin, essa fase visa entender o processo, os gates e os gatekeepers

Entender o processo e suas etapas

Kurt Lewin começa o texto afirmando sobre a necessidade de compreender profundamente o processo que deseja se transformar. Isso significa identificar todas as ações que o compõem, bem como os fatores que influenciam a tomada de decisão. 

Por exemplo, ao investigar o processo de tomada de decisão relacionado às escolhas alimentares, Lewin propõe uma análise detalhada dos canais envolvidos — desde a compra, o transporte dos alimentos para casa, seu armazenamento, preparo e, finalmente, o consumo. Cada uma dessas etapas representa um ponto potencial de decisão e de conflito, que pode ser objeto de intervenção. Na ação específica de compra de um alimento, o indivíduo se depara com uma situação que envolve escolhas e conflitos. Por exemplo, um alimento "X" pode ser altamente atrativo (uma força a favor do consumo), mas também pode ter um preço elevado (uma força contrária à compra). A  necessidade de uma tomada de decisão surge quando há uma tensão entre forças opostas.

Identificar os gates e os gatekeepers

Durante um processo ocorrem momentos decisivos que Lewin denomina gates. Os gates são pontos críticos no fluxo do processo em que uma decisão precisa ser tomada, geralmente marcada por um conflito entre forças. Uma vez identificados esses gates, é fundamental perguntar: quem são os gatekeepers? Ou seja, quem são as pessoas que decidem o que — ou quem — pode entrar ou não naquele canal ou etapa do processo? Os gatekeepers controlam o acesso a recursos, informações ou ações.

O segundo passo é entender como influenciar o gatekeeper.  Isso exige conhecer os fatores e critérios que ele utiliza para tomar suas decisões — ou seja, quais são os conflitos e forças percebidas naquele ponto. A partir dessa compreensão, o intervencionista pode buscar modificar a relação entre essas forças, atuando sobre a percepção, o conhecimento ou as crenças do gatekeeper.

Por exemplo, em uma escolha entre o alimento A e o alimento B, ou entre comprar e não comprar um determinado item, há forças a favor e contra cada alternativa. O intervencionista pode introduzir novas informações ou perspectivas que alterem o equilíbrio dessas forças — como destacar, benefícios nutricionais, impactos financeiros ou implicações sociais — influenciando assim a decisão final do gatekeeper. Mas será que apresentar novas informações para aumentar a motivacäo é suficiente? 

2. A intervencão

Lewin apresenta os resultados de um experimento comparando dois métodos de intervenção conduzido com donas de casa para mudar hábitos alimentares e promover o consumo de miúdos de carne. 

No primeiro método de intervenção, um grupo de donas de casa participou de uma palestra.  A palestra começa com o intervencionista relacionando o consumo de miúdos (intestinos) ao contexto da guerra. Em seguida, durante a exposição, foram apresentados os benefícios nutricionais dos miúdos, seus aspectos econômicos, e formas de preparo que pudessem reduzir suas características aversivas, como o mau cheiro, a textura e a aparência. Ao final, as participantes receberam receitas práticas para incentivar o uso dos miúdos na alimentação familiar.

No segundo método, outro grupo participou de um processo de tomada de decisão em grupo. Assim como no grupo anterior, o consumo de miúdos foi relacionado ao esforço de guerra, mas a abordagem foi diferente. O processo começou com uma discussão sobre se e como outras donas de casa poderiam ser envolvidas na mudança de hábitos alimentares. A discussão seguiu no sentido de identificar os potenciais obstáculos à mudança e como eles poderiam ser superados. O palestrante ofereceu sugestões práticas (receitas) apenas após a análise coletiva desses obstáculos e das possíveis formas de superá-los. Ao final da reunião, as mulheres foram convidadas a levantar a mão caso estivessem interessadas em experimentar uma das receitas até a semana seguinte. 

Uma reunião de acompanhamento revelou os seguintes dados: entre as mulheres que participaram apenas da palestra, apenas 3% prepararam uma das receitas. Já entre aquelas que participaram da reunião em grupo, 32% testaram uma das sugestões. Como compreender essa diferença de adesão — mais de dez vezes maior — na dinâmica de tomada de decisão em grupo?

Lewin aponta alguns fatores para explicar essa grande diferença. O primeiro é o nível de envolvimento. No grupo de donas de casa que participou da tomada de decisão coletiva, dois princípios foram respeitados: Garantir alto envolvimento, 2) Não restringir a liberdade de decisão — ou seja, a escolha foi feita por vontade própria.

Como destaca Lewin, é importante observar que a discussão não se concentrou diretamente no "nós" — as participantes —, mas sim em "pessoas como nós". Esse deslocamento de foco permitiu um distanciamento emocional, o que favoreceu a neutralidade e evitou tanto a dissonância cognitiva quanto a resistência à mudança. Dessa forma, os problemas e as possibilidades puderam ser considerados sem preconceitos.

Outra técnica sugerida por Lewin para lidar com a resistência à mudança é o psicodrama, utilizado em uma de suas intervenções. Essa abordagem pode facilitar a experimentação de novas perspectivas e atitudes em um ambiente seguro e simbólico.

Na minha visão, além desses aspectos, a intervenção também promoveu maior comprometimento com a mudança ao transformar a ação em uma causa social: ajudar outras pessoas semelhantes a adotar novos hábitos. Isso pode ter atribuído um valor social às ações das participantes, apresentando-as como agentes de transformação coletiva, e não apenas como indivíduos tentando mudar seu próprio comportamento.

Motivos versus decisão

É interessante observar que Lewin faz uma distinção clara entre motivação e decisão. Ambos os conceitos não são idênticos. A motivação impulsiona a ação, mas, em situações de conflito entre motivos, o indivíduo pode ficar paralisado até que uma decisão seja tomada.

O problema, portanto, não é a falta de motivação, mas sim o que o indivíduo se encontra em um conflito entre duas forças de motivação com intensidades semelhantes. Segundo Lewin, o processo de decisão não se resume a uma das forças ser levemente superior à outra. Em vez disso, é necessário que uma das forças seja praticamente extinta, ou reduzida a quase zero. Caso contrário, a pessoa tenderia a voltar atrás após tomar uma decisão.

Lewin observa que, uma vez tomada, a decisão tende a se manter estável e persistente — ela se transforma em uma volição, uma vontade firme, que não muda facilmente. Isso indica que o motivo oposto foi suprimido ou significativamente enfraquecido. Se as forças opostas continuarem em equilíbrio ou com diferença mínima, não se pode falar em uma decisão real, pois ela permanece instável e sujeita à mudança.

Portanto, o ato de decidir envolve um momento em que uma das alternativas é congelada ("freezed", no vocabulário de Lewin), permitindo que a outra se torne totalmente predominante. Esse congelamento é o que confere estabilidade à escolha.

Decisão individual ou em grupo 

Lewin aponta que ambos os métodos — a palestra e a dinâmica de grupo — não são experiências puramente individuais nem puramente coletivas. No caso da palestra, o indivíduo também está inserido em um grupo, assim como na dinâmica de grupo.

Mas, então, o que explica a diferença de mudança ser dez vezes maior no caso da dinâmica de grupo?

Uma das explicações é que o processo de formação de metas, entre seres humanos, depende fortemente dos padrões do grupo (group standards). Lewin menciona experimentos anteriores que indicam que é mais fácil mudar ideologias e práticas sociais em pequenos grupos reunidos e engajados coletivamente do que de forma individualizada (Lewin & Grabbe, 1945).Os indivíduos tendem a evitar se afastar dos padrões do grupo e, geralmente, só mudam se o grupo também mudar. Se a pessoa perceber, durante a discussão, que o grupo está mudando, é mais provável que ela também mude.

Aqui, não estamos falando de decisões coletivas sobre metas do grupo, mas sim de decisões individuais tomadas no contexto do grupo — ou seja, o indivíduo toma uma decisão própria, mas influenciado pela dinâmica grupal.

Lewin aponta alguns cuidados importantes ao se planejar e promover mudanças sociais. O primeiro diz respeito ao objetivo da intervenção, que não deve ser tratado como uma "coisa" ou um resultado final estático, mas sim como um processo contínuo, ou seja, uma sequência de ações dentro de um processo social mais amplo.

Um segundo ponto essencial é a necessidade de romper com o estado de equilíbrio e estabilidade vigente. Para isso, Lewin propõe dois caminhos possíveis:

  1. Adicionar forças na direção desejada;

  2. Reduzir as forças que atuam na direção oposta.

Embora ambos os caminhos possam levar a um novo estado de equilíbrio, eles produzem efeitos diferentes. Ao se aumentar as forças em direção à mudança, também se aumenta a tensão interna, o que pode gerar emoções intensas, agressividade e, como consequência, reduzir a capacidade criativa e aumentar a resistência.

Já ao se reduzir as forças contrárias, a tensão tende a diminuir, criando um ambiente mais propício à mudança genuína e duradoura. Por isso, Lewin recomenda o segundo métodoatuar na redução das forças internas que se opõem à mudança desejada, em vez de simplesmente aplicar pressões externas a favor dela.

Social Habits and Group Standards

Lewin apresenta a noção de hábito social referindo-se a um estado de equilíbrio e resistência interna à mudança. Para quebrar essa resistência, é necessário romper com o hábito — processo que o autor chama de "descongelar" (unfreeze) a conduta estabelecida.

Nesse processo, é importante considerar que o comportamento de um indivíduo tende a gravitar em direção ao nível de conduta do grupo ao qual ele pertence — ou deseja pertencer. Conformar-se ao padrão do grupo torna-se uma "valência positiva" para o indivíduo, ou seja, algo desejável.

Portanto, a resistência individual à mudança tende a diminuir se reduzirmos a diferença entre o padrão de comportamento do indivíduo e o padrão vigente no grupo. Isso ajuda a explicar por que é mais fácil modificar o comportamento de um indivíduo em grupo do que isoladamente.

Unfreezing, moving and Freezing

No final do artigo, Lewin menciona sua famosa teoria das três etapas da mudança — unfreezingmoving e freezing (ou refreezing) —, porém não aprofunda o processo, nem explica em que ele consiste ou como conduzi-lo ou facilitá-lo.


Referencias 


Lewin, K. (1948). Resolving Social Conflicts: Selected Papers on Group Dynamics. Edited by Gertrud Weiss Lewin. New York: Harper & Row.

Lewin, K., & Grabbe, P. (1945). Conduct, knowledge, and acceptance of new values: Problems of re-education. Journal of Social Issues1(3), 53–64. 


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