Dissonância Cognitiva na Teoria da Atividade
Dissonância Cognitiva na Teoria da Atividade
Por Marco Antonio Pereira Querol
O objetivo deste texto é apresentar à Teoria da Dissonância Cognitiva, proposta por Leon Festinger em 1957, e discutir como pode ser minimizada em intervenções formativas. Para isso, utilizo como base o capítulo escrito por Eddie Harmon-Jones e Judson Mills (2019), intitulado An Introduction to Cognitive Dissonance Theory and an Overview of Current Perspectives on the Theory. Ressalto que não apresento aqui ideias próprias, apenas repito ideias de outros na esperança de torná-las mais compreensíveis e acessíveis, através de minha interpretação.
O conceito de dissonância cognitiva é relevante por ser central no processo de aprendizado. É a dissonância que pode levar à mudança de conhecimento — ou à resistência a essa mudança. Ela é um elemento fundamental tanto na teoria de tomada de decisão em grupo de Kurt Lewin (1945), a ideia de double bind de Batson, quanto no princípio da estimulação dupla de Vygotsky (1978). Apesar dos autores usarem termos diferentes, no meu ver se referem a fenômenos relacionados (discrepâncias, vinculo duplo e conflito de motivos). Compreender como lidar com uma dissonância cognitiva em direção a uma solução construtiva é essencial para o aprendizado e o sucesso de intervenções formativas.
A Teoria da Dissonância Cognitiva de Festinger
A teoria da dissonância cognitiva de Festinger (1957) começa com a existência de pares de cognições, que são elementos de conhecimento. Esses pares podem ser relevantes ou irrelevantes entre si. Quando duas cognições são relevantes — ou seja, estão relacionadas —, elas podem ser consonantes ou dissonantes. Duas cognições são consonantes se uma decorre logicamente da outra, e são dissonantes se uma contradiz a outra, ou seja, se o oposto de uma parece derivar da outra.
O surgimento da dissonância gera um desconforto psicológico, o qual motiva a pessoa — impulsiona-a, criando uma força interna — a reduzi-la. Isso geralmente ocorre por meio da evitação de informações que poderiam aumentar a dissonância. Quanto maior for a dissonância, maior é a pressão interna para reduzi-la.
A magnitude da dissonância depende do número e da importância das cognições que são consonantes ou dissonantes com aquela em questão. Quanto maior for o número e a relevância das discrepâncias, maior será a dissonância. O oposto também é verdadeiro: quanto maior for o número e a importância das cognições consonantes, menor será a dissonância percebida.
É importante destacar que a eliminação ou a redução da importância da cognição discrepante é apenas uma das estratégias que um indivíduo pode adotar. A pessoa também pode adicionar novas cognições consonantes ou aumentar a importância daquelas já existentes. A escolha dessas estratégias depende do nível de resistência das cognições envolvidas. Essa resistência está relacionada à responsividade à realidade e ao grau em que determinada cognição é consonante com várias outras cognições do indivíduo.
Um exemplo clássico apresentado por Festinger (1957) é o de um fumante que descobre que fumar faz mal à saúde. Essa nova informação entra em dissonância com o hábito de fumar, gerando desconforto psicológico. A pessoa pode lidar com essa dissonância de diferentes formas:
Mudando o comportamento, ou seja, parando de fumar para alinhar-se à cognição de que fumar é prejudicial;
Modificando a cognição discrepante, tentando desacreditar a ideia de que fumar faz mal, por meio de argumentos contrários;
Adicionando cognições consonantes, como procurar estudos que supostamente apontem benefícios do fumo (ex.: ajuda a emagrecer), ou reforçando justificativas pessoais (ex.: “fumar me faz feliz”, “todos fumam”, “eu preciso fumar para lidar com o estresse”).
Apesar de valiosa, a teoria da dissonância cognitiva de Festinger (1957) permaneceu em certa medida abstrata, já que o conceito de cognição é amplamente aplicado a diversos fenômenos. Cognições podem envolver percepções, comportamentos, atitudes, crenças, sentimentos, motivações e emoções. Essa abrangência permite que a teoria seja aplicada em uma ampla variedade de tópicos e contextos, mas também limita seu poder explicativo. Para resolver tal limitação tentarei dialogar a seguir com a Teoria Histórico Cultural da Atividade.
Uma Interpretação da Dissonância Cognitiva à Luz da Teoria da Atividade Histórico-Cultural
O surgimento da dissonância cognitiva pode ser compreendido, à luz da Teoria da Atividade Histórico-Cultural (Engeström, 1987), como uma situação de conflito de motivos ou de vínculo duplo, a manifestação de contradições no e entre os elementos de um sistema de atividade em que o sujeito está inserido. Nessas situações as contradições geram conflito de motivos e cognições discrepantes que se manifesta subjetivamente como dissonância. No entanto, se essas contradições não forem reconhecidas e trabalhadas, a dissonância pode levar à estagnação ou à interrupção do aprendizado expansivo, travando o desenvolvimento do sujeito e do coletivo.
As contradições presentes no sistema de atividade se manifestam de formas distintas para diferentes membros da comunidade. Ao se expor a cognições ou práticas opostas, é natural que o sujeita experimente dissonância cognitiva. No entanto, quando essas contradições são compreendidas de forma sistêmica, o sujeito pode se tornar consciente das contradições por trás das cognições opostas e co-construir alternativas que as resolvam.
Segundo essa perspectiva, a dissonância não é apenas um fenômeno individual ou psicológico, mas sim um reflexo de contradições no sistema sociocultural e histórico em que o sujeito atua. Ela pode se manifestar na forma de resistência, uma forma inicial de ação agentiva.
Transformar a dissonância cognitiva em oportunidade de aprendizagem exige uma mudança da culpabilização do outro para uma visão sistêmica e histórica do problema. É nesse ponto que se articula o conceito de estimulação dupla de Vygotsky. Esse método ou princípio propõe introduzir dois estímulos, um que cria uma situação de conflito de motivos e outro, um segundo estímulo — um artefato auxiliar mediador — que ajude o sujeito a sair da situação de impasse.
Na prática, pode-se usar como primeiro estímulo dados espelho como:
Evidências históricas (para compreenderem a origem das contradições),
Diagnósticos do presente (para compreender o atual sistema e forma de trabalho, e tornar visíveis as manifestações das contradições),
E projeções ou possibilidades futuras (para inspirar novas soluções).
Esses dados são então interpretados com o uso de um segundo estímulo, que ajuda o sujeito a re-interpretar a situação, e mudar a sua cognição. Esse segundo estímulo não resolve o conflito por si só, mas atua como um catalisador de agência — permitindo ao sujeito criar uma terceira cognição ou solução que integre as anteriores, levando ao aprendizado.
Contudo, é importante reconhecer os riscos dessa abordagem. A exposição direta de dados espelho pode gerar bloqueio, defensividade ou desistência por parte dos sujeitos envolvidos, especialmente se forem interpretados como crítica direta ou pessoal. Para evitar esses efeitos, algumas estratégias são recomendadas:
Coletar previamente dados sobre possíveis conflitos latentes;
Iniciar o trabalho com grupos separados, quando há tensões explícitas, permitindo que cada grupo reflita sobre suas contradições antes de um encontro conjunto;
Utilizar dados-espelho neutros e indiretos, que convidem à reflexão sem provocar reações defensivas imediatas;
Fomentar um espaço protegido de diálogo, onde diferentes perspectivas possam ser compartilhadas com segurança.
Por exemplo, um indivíduo pode estar diante de uma situação em que sofre pressão para seguir uma prática institucional (ex: pulverização aérea), ao mesmo tempo, em que reconhece seus impactos ambientais negativos. A dissonância entre a exigência institucional e sua consciência ecológica pode ser paralisante. Um segundo estímulo — como o exemplo de uma empresa semelhante que adotou práticas mais seguras com bons resultados econômicos — poderia eventualmente ajudar o sujeito a imaginar uma nova possibilidade e reconstruir sua motivação para a mudança.
Respostas a dissonância cognitiva
A teoria da ampliação das alternativas (spreading alternatives) refere-se ao fenômeno em que, após tomar uma decisão difícil, a pessoa tende a reduzir a dissonância cognitiva ajustando sua percepção das opções envolvidas — ela pode minimizar os aspectos negativos da alternativa escolhida e/ou maximizar seus pontos positivos, ao mesmo tempo em que diminui os pontos positivos e/ou enfatiza os negativos da alternativa rejeitada.
Outro fenômeno é conhecido como paradigma da desconfirmação de crenças (belief disconfirmation paradigm), que ocorre quando uma pessoa é exposta a informações que geram dissonância cognitiva por serem inconsistentes com suas crenças; se ela não mudar suas crenças, pode interpretar mal a informação, rejeitá-la ou refutá-la, buscando apoio de pessoas que compartilham das mesmas crenças e tentando persuadir os outros a aceitá-las.
Um terceiro fenômeno está relacionado à execução de tarefas difíceis para alcançar um resultado desejado: visando reduzir a dissonância, a pessoa tende a exagerar ou supervalorizar os resultados, adicionando consonância às suas cognições para justificar o esforço realizado; esse fenômeno é chamado de justificação do esforço (effort justification) e, quanto mais difícil ou desagradável for a tarefa, maior será a tendência de superestimar o valor do resultado. Esse fenomeno pode ser exemplificado pela cerimonias de entrada em grupos de fraternidade, quando maior os sacrifícios ou embarassing activities a pessoa tem que fazer, mais ela valorizará os resultados obtidos.
Referências
Harmon‑Jones, E. & Mills, J. (2019). An Introduction to Cognitive Dissonance Theory and an Overview of Current Perspectives on the Theory. In E. Harmon‑Jones & J. Mills (Eds.), Cognitive Dissonance: Progress on a Pivotal Theory in Social Psychology (pp. 3–24). Washington, DC: American Psychological Association
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